Avelino, mais tarde Saidy Mingas, que saltava em altura, o Armindo, o famoso mongol, campeão de lançamento de dardo, o Sr. Cirilo da Conceição, da Meteorologia, que morreu afogado no rio Zaire, em demanda de outros horizontes, e o meu irmão Carlos Belli- Bello, que também praticava atletismo e frequentava a Sociedade Cultural de Angola.
Tinham- todos- decidido romper com uma ordem injusta, caduca, colonial, numa cidade permanentemente dividida. Havia uns e os outros. E esse movimento foi ganhando clara expressão em Luanda, sobretudo no sector da juventude, e noutras partes de Angola, que nessa altura ainda não se sentava à mesa das Nações.
Mas a tal rua de que agora me ocupo, a antiga Rua da Índia, no Bairro do Cruzeiro, hoje Patrice Lumumba, era local frequentado por muita rapaziada com preocupações e ambições num futuro menos frustrador, com outros horizontes- mais amplos.
Recordo-me do Mário Simões Torres, exímio desportista, que a PIDE encarcerou. E dos saraus de poesia que o meu irmão organizava em casa dos nossos pais, com amigos chegados: o Hélder Neto e o António (Necas) Cardoso e o Adelino Torres Guimarães. Também frequentava a Rua da Índia o Nini Monteiro, hoje general (na reserva) Ngongo, portador de livros "proibidos", que circulavam numa rede clandestina e de enorme cumplicidade, de mão em mão. Foi assim que cheguei a Frantz Fanon, autor do seminal "Os Condenados da Terra".
E havia ainda aqueles dois irmãos que passavam por nós, os miúdos daquele tempo, e iam conversando connosco. Recordo-me bem do Gigi e do João. Conhecidos como os "manos Catete", porque dali eram oriundos, ou também os manos "carapau", porque sobrinhos de um excelente professor de Literatura em Língua Portuguesa, que foi, no meu tempo de Liceu (então Paulo Dias de Novais), Reitor. Trata-se do Dr. José Saraiva de Carvalho, ou o professor "carapau", que obrigava os estudantes a tomar um copo de leite num dos intervalos das aulas, para compensar a fome que muitos de nós trazíamos de casa.
O Gigi, Gilberto António Saraiva de Carvalho, que já nos deixou em condições trágicas, era o paciente matemático, com preocupações sociais. Acabou por ser meu explicador de Matemática. E falou-me da Independência, da geografia da fome. Comecei com ele e com o João Arnaldo a entender melhor a causa do esvaziamento da Rua da minha infância. O João era diferente. Vivia apaixonado pela Filosofia, pela História e pelas Letras.
Curioso como sempre procurei ser, sem o irmão mais velho, fui transformando aqueles "manos Catete" na minha própria família, nas minhas referências, nos meus mestres!
E, com frequência, no Largo do Cruzeiro, contíguo à Rua da minha infância, tinha aulas, sobretudo em períodos de exames no Liceu, com os dois irmãos, que já eram os meus irmãos: o Gigi e o João.
Ainda hoje, no filme da minha vida, lembro-me das aulas, das conversas com o João: o "milagre grego", os existencialistas franceses, enfim: Sartre, Simone de Beauvoir, Gabriel Marcel, e, sempre em movimento como um rio, as conversas acabavam na literatura: Jorge Amado, eterno libertário da Bahia, os poetas inconformados: Nicolás Guillén, Pablo Neruda, Garcia Lorca, Aimé Cesaire, Léopold Senghor e, inevitavelmente, aqueles que melhor corporizam esse movimento intelectual e político interminável: "Vamos Descobrir Angola"- Agostinho Neto, Viriato da Cruz e António Jacinto- poetas da nação literária angolana.
E assim começa a minha "démarche" política, por intervenção dos "manos Catete": Gigi e João.
Aqui fica a minha eterna gratidão.
É o militante da luta de libertação, que abandona a meio um curso de Direito, em Coimbra, e parte para o combate da sua vida, juntando-se a outros jovens- verdadeiros combatentes da liberdade.
Só consegui abraçá-lo, depois do 25 de Abril, quando foi libertado da prisão, numa altura em que se construía Novembro.
E não posso deixar de sublinhar um facto terrível no seu percurso de guerrilheiro: Sebastiana Valadas e Avelino Durães, comerciantes portugueses em Cassai- Gare, no Leste de Angola, que tiveram uma vida dupla durante a guerra colonial, tanto ajudavam os guerrilheiros do EME, fornecendo-lhes mantimentos, como os denunciavam e- os entregavam- à PIDE, que fez deles informantes, os famosos bufos, impediram a marcha do jovem guerrilheiro. E assim, na operação nomeada "Fina- Flor", em Janeiro de 1972, resultou na prisão do nosso João Arnaldo Saraiva de Carvalho, conhecido por Tetembwa (estrela em língua angolana kimbundu).
Depois do nosso aniversário colectivo, 11 de Novembro de 1975, desempenhou várias funções oficiais, que os seus companheiros do Exército e da Polícia, com profundo conhecimento - e toda a
legitimidade-, salientaram no dia do seu funeral.
Fiquei a dever-lhe muitas atenções, especialmente numa altura em que exercia o cargo de embaixador em Argel, nomeadamente num momento horroroso da minha vida, relacionado com a doença - e morte- do meu filho Tauhid, com Monteiro da mãe e Belo do pai. Foi inexcedível. Um conjunto de gestos que vivem comigo tatuados na alma. Isso não sou capaz de descrever. Obrigado, João. Aqui deixo- publicamente- o meu reconhecido Agradecimento.
E então, meu Caro Professor, o que resta? E agora regresso a um dos teus poetas favoritos: o inesquecível Vinicius de Moraes:
"Resta essa faculdade incoercível de sonhar, de transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade, de aceitá-la tal como é, e essa visão ampla dos acontecimentos.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos. Resta esse diálogo cotidiano com a morte. Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto.
Esse eterno levanta-se depois de cada queda. Essa busca de equilíbrio no fio da navalha. Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo infantil de ter pequenas coragens".
Adeus, João Arnaldo Saraiva de Carvalho.

Comissário Tetembwa. Sei que estás infeliz, mas resignado, dentro desse caixão. E logo tu: um ser de paixões, de afectos, um construtor de pontes. Vai ser difícil para todos nós dizer-te Adeus.