É sabido que este novo mundo é hoje multipolar e não bipolar e que a realidade do equilíbrio de forças à escala global não é mais o que emergiu da 2.ª Grande Guerra, mas a orgânica da ONU permanece inalterada, logo aceite.
Sendo esta conclusão evidente, não é menos certo de que a defesa da integridade territorial de países soberanos, como a Ucrânia, não pode ser questionada e muito menos pela força bruta das armas por um país vizinho, ainda por cima membro do Conselho permanente da ONU.
A invasão da Ucrânia pela Federação Russa é uma questão que não diz apenas respeito aos dois países envolvidos ou à Europa, mas a toda a comunidade internacional.
Os países africanos são os primeiros a compreendê-lo.
Quando foi criada a então OUA - Organização de Unidade Africana, os fundadores desta - e bem - procuraram garantir a segurança e a paz dos países que a passaram a integrar, assegurando, desde logo, a inalterabilidade das fronteiras.
Isto porque a quase totalidade das fronteiras dos países africanos são artificiais, em consequência da Conferência de Berlim de 1885.
Admitir que essas fronteiras poderiam ser corrigidas e legitimadas com o retorno às que historicamente existiam era pura e simplesmente fazer implodir todo o continente africano.
Isso não significa que a própria OUA e a ONU não tivessem sufragado a cessação da região da Eritreia da Etiópia, dando origem a um novo país, ou a criação do Sudão do Sul, atendendo a razões muito particulares e que aqui não cabe desenvolver.
Mas não são apenas os países africanos que entendem esta evidência.
Na própria Europa são vários os movimentos que defendem as independências das regiões de países de que fazem parte.
Putin, ao avançar de forma condenável contra a Ucrânia, não se coibiu de iludir o mundo, alegando serem meros exercícios militares os que visionávamos nas fronteiras com a Ucrânia antes da invasão, mas não contou com a reacção da opinião pública mundial depois de concretizar essa invasão.
Desde logo, dos povos dos países da U.E., da unidade desta, do reforço das relações euro-atlânticas, da postura da NATO e das crescentes sanções para o isolamento da Federação Russa.
A própria China, que por razões próprias defende a integridade das fronteiras de países soberanos devido à questão de Taiwan, não poderia deixar de se abster na reunião havida no Conselho de Segurança da ONU.
Situação semelhante, aliás, à da Índia.
O isolamento da Rússia é, assim, muito sério e o apoio ao povo e Governo ucraniano é totalmente claro.
Neste quadro e no que respeita a África, não é por acaso que a África do Sul pediu com clareza a retirada das tropas russas da Ucrânia.
À data em que escrevo o presente artigo não é ainda nítido o que resultou ou resultará das negociações entre as delegações da Rússia e da Ucrânia.
Uma certeza existe, qualquer que venha a ser o desfecho deste grave e perturbador conflito, que, também por declarações insensatas de Putin, questionam a legitimidade da utilização própria de armamento nuclear.
O conflito terá uma enormíssima influência política e económica no quadro mundial.
Do ponto de vista económico, os significativos aumentos do preço do petróleo e do gás, entre várias outras commodities, devem conduzir a que os países africanos que têm esses recursos passem a aplicar as receitas adicionais geradas, que vão muito para além das previsões orçamentais, numa real diversificação da economia na logica da auto-sustentabilidade dos países em benefício dos povos.
Esta é também uma lição a retirar, para além da avaliação dos Governos, como o de Putin, que, abusando da autoridade, se procuram legitimar pelo medo, pela força do dinheiro e das armas, sem cuidarem de ver que todo o poder é efémero, que a economia é um instrumento da politica e não um fim e que os cidadãos, em qualquer parte do mundo, vivam onde viverem, anseiam pela liberdade e pela paz.
O respeito pela liberdade e pelos direitos humanos, pelas regras do direito internacional, são conquistas civilizacionais que cumpre aos poderes executivos defenderem intransigentemente, conscientes que o poder é mesmo efémero, repito.
A questão da Ucrânia aí está, por razões trágicas, a conceder-nos múltiplos ensinamentos... n
*Secretário-geral da UCCLA