Rubricado em Roma pelo Presidente Joaquim Chissano e pelo chefe da RENAMO, Afonso Dhlakama, e negociado minuciosamente durante mais de dois anos sob mediação do Conselho Cristão de Moçambique (CCM que integra 17 igrejas protestantes), Comunidade (católica) de Santo Egídio com o apoio do Governo italiano, o AGP pôs fim a 16 anos de uma guerra que provocou centenas de milhares de mortos e incalculáveis perdas materiais.

A assinatura do acordo, que interrompeu a guerra contra o Governo da FRELIMO desencadeada pela RENAMO desde o início da Independência com o apoio do regime segregacionista de Ian Smith da então Rodésia do Sul (Zimbabwe) e do Apartheid da África do Sul, beneficiou da conjuntura internacional.

Em África, por exemplo, já sopravam ventos de mudança no sentido do pluralismo. Angola já tinha realizado as primeiras e fracassadas eleições, Nelson Mandela já tinha sido libertado, o Zimbabwe e a Namíbia já eram livres e, no mundo, também já tinha caído o muro de Berlim que dividia a Alemanha, símbolo da Guerra-Fria, em que os conflitos africanos também eram enquadrados.

Neste contexto, em 1990, a FRELIMO aprova uma Constituição Democrática em que muda a designação do País de República Popular de Moçambique, adoptada em 1975 com a proclamação da Independência Nacional, para República de Moçambique.

Esta Constituição define o País como "um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do Homem".

Com a aprovação da Constituição moçambicana de 1990, abre-se caminho para a instituição da Democracia, a participação democrática dos cidadãos nos processos de governação do País, surgimento e legalização de formações políticas, passos decisivos para a assinatura, dois anos depois, do AGP e a realização, em 1994, das primeiras eleições multipartidárias e democráticas do país.

Ao consagrar o direito de todos "à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, bem como o direito à informação", a nova Constituição abre caminho para a criação da Lei de Imprensa, instrumento fundamental para a construção da democracia.

Assim, no ano seguinte, é aprovada a Lei de Imprensa, resultante também da "luta dos jornalistas moçambicanos", como salienta Tomás Vieira Mário no seu Livro "25 Anos de Liberdade de Imprensa em Moçambique (1991-2016) História Percurso e Percalços".

Lei que defende "a liberdade de imprensa, nomeadamente a liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e do sigilo profissional e o direito de criar jornais e outras publicações".

Apesar dessas garantias consagradas na legislação do país, atento aos sinais de fracasso do Acordo de Paz de Angola, Afonso Dhlakama criou alguns obstáculos à assinatura do AGP, impondo, à última hora, condições não discutidas durante o longo período de negociações.

Poucos dias antes do 1 de Outubro (data inicialmente marcada para assinatura do Acordo), quando se aguardava pela chegada de Dhlakama a Roma, o embaixador italiano em Moçambique, Incisa di Camerana, envia um fax de Maputo para a capital italiana, alertando para a repentina mudança de posição do chefe da RENAMO.

No fax, Di Camerana escrevia: "no decurso do recente encontro com o presidente da RENAMO, este afirmou-me que ele quer que o acordo de paz seja o mais detalhado possível (...) Que não sejam deixados de lado problemas que poderão parecer de menor importância, mas que pelo contrário poderão depois criar controvérsias, tal como sucedeu em Angola...".

Tomás Vieira Mário, jornalista moçambicano que cobriu as negociações e a assinatura do Acordo Geral de Paz na capital italiana, sublinha as "fortes incertezas quanto à possibilidade da assinatura do acordo no dia 1 de Outubro, pois a própria vinda de Afonso Dhlakama a Roma se mantém envolta em incertezas".

O chefe da RENAMO mostra essa hesitação numa altura em que já se encontravam em Roma para a cerimónia de assinatura do Acordo de Paz, os Presidentes de Moçambique, Joaquim Chissano, do Zimbabwe, Robert Mugabe, e do Botswana, Quett Masire.

Muito pressionado pelos mediadores e pela comunidade internacional, Dhlakama chega a 1 de Outubro a Roma, onde, até à assinatura do acordo, negoceia ainda "três assuntos críticos: a administração civil dos territórios sob o controlo militar da RENAMO; o estatuto do SISE (Serviços de Informação e Segurança do Estado) e garantias de segurança dos dirigentes da RENAMO", de acordo com Tomás Vieira Mário, para quem o AGP nasceu de "um parto por cesariana".

Assinado o acordo, Moçambique vive um período de paz, aproveitado para apostar no desenvolvimento, instituir as autarquias e realizar regularmente eleições legislativas e presidenciais, sempre ganhas pela FRELIMO, partido fundador do Estado.

No entanto, o AGP, que vigora até hoje, descurou, segundo vários observadores, a importância para o País de umas Forças Armadas robustas como elemento central da defesa da soberania de um Estado democrático.

Esta falha torna-se mais visível neste momento que o País de Eduardo Mondlane e de Samora Machel enfrenta, desde 2017, uma guerra de terrorismo que já causou mais de quatro mil mortos e 800 mil deslocados internos.

Se Joaquim Chissano tem o seu nome ligado à paz, democratização e conquista das liberdades políticas e cívicas, também está associado ao enfraquecimento das Forças Armadas moçambicanas que hoje precisam de ajuda de países da região para combater o terrorismo intramuros.

Debilidades que ganham visibilidade quando a RENAMO regressa à guerra em 2013, amedrontando e criando instabilidade no País, a partir do seu quartel-general na Gorongosa, província moçambicana de Sofala.

Fundada por André Matsangaíssa, um falecido dissidente da FRELIMO, a RENAMO usou novamente a guerra civil a partir de 2013, para exercer pressão política sobre o Governo, reivindicando parte das receitas do gás, mais cargos na chefia das Forças Armadas e alteração da Lei Eleitoral.

Com isso, afirma-se como partido militar com assento parlamentar com o seu chefe, Afonso Dhlakama, refugiado na base da Gorongosa, a partir da qual desencadeava acções militares, causando perdas humanas e materiais, sobretudo no Centro de Moçambique.

Guerra que teria um curto período de tréguas, com a assinatura de um novo acordo de Paz entre o Governo e a RENAMO, em 2019, logo após a morte de Dhlakama, por doença.

Ao rubricarem o documento em Maputo, Filipe Nyusi, actual Presidente de Moçambique e Ossufo Momade, sucessor de Dhlakama, juraram nunca mais pegar em armas para resolver os diferendos no país.

No entanto, Ossufo Momade esqueceu-se de que não controlava a chamada Junta Militar (JMR), ala militarista da RENAMO que, para mostrar a sua discordância da nova liderança do partido e dos termos do processo de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) dos militares da RENAMO, desencadeia ataques em diferentes localidades da região Centro, até finais de 2021.

Nessa altura, Moçambique já enfrentava os terroristas na província de Cabo Delgado, rica em gás natural e pedras preciosas, importantes fontes de receitas do País.

A desmobilização dos cinco mil militares que integravam a JMR só foi possível depois de Mariano Nhongo, chefe da referida junta, ter sido abatido durante uma troca de tiros com a Polícia, numa mata do distrito de Cheringoma, província de Sofala, Centro do país.

Para tal, foram necessários meses de ofensivas das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), visando travar os ataques armados do grupo rebelde da RENAMO, responsável pela morte de mais de 30 pessoas em estradas e povoações das províncias de Manica e Sofala.