Talvez o melhor fosse ter ficado calado para sempre. Era somente deixar os velhos morrerem um-a-um e serem sepultados nas catacumbas do esquecimento. Assim, se enterraria também o seu incómodo testemunho. Tudo ficaria esquecido, como se nunca tivesse existido a guerra das cidades, nem os mortos e tampouco os traumas da destruição, ocorrida durante a crise pós-eleitoral de 1992.
Porém, a questão é que para a terra viver em paz, foi porque os mais-velhos, conseguiram guardar os segredos, conforme dizia o tio Raul David. O nosso ancião escritor da Ganda, foi um dos homens mais sábios que conheci. O tio Raúl sabia bem do que falava.

Ao abordar a temática da literatura de guerra, o escritor português João de Melo alertou para a influência do "complexo ideológico" na narrativa de conflitos. Trata-se de um conceito que determina que, ao existir uma proximidade ideológica do escritor a uma das partes beligerantes, isso o leva a colocar na sua narrativa os argumentos e razões por que combateu. Consciente dessas nuances, aspirei a apresentar uma perspectiva honesta e objectiva dos acontecimentos que moldaram a realidade de Benguela, naqueles conturbados tempos da sua história de quase cinco séculos.

Melo refere-se, também, a persistente tentação da sociedade julgar, não as pessoas pelos seus textos, mas estes por aquelas. Trata-se de uma constatação que igualmente despertou o nosso interesse, quando tomamos a decisão de avançar com o projecto do livro, unicamente focado na historicidade dos factos, tal como os vivemos.

Nos meandros deste assunto, creio igualmente ser legitimo questionar se a memória de um homem consegue manter-se fiel à verdade de factos que ocorreram há três décadas.
Numa das suas brilhantes reflexões, o escritor peruano laureado com Prémio Nobel de Literatura em 2010, Mario Vargas Llosa, discorreu sobre a complexidade da memória, descrevendo-a como uma armadilha que subtilmente reorganiza o passado, para adequá-lo ao presente. A questão levantada por Llosa ecoou como um alerta pertinente, para a trama de lembranças que constitui o livro. A forma como nos lembramos e interpretamos os eventos passados pode ser influenciada pelas nossas actuais experiências, emoções e perspectivas. De alguma maneira, são inúmeras as possibilidades de ocorrer uma deformação da realidade.
A memória, essa poderosa ferramenta capaz de moldar a nossa identidade e a compreensão do mundo, pode também fragilizar-se e estar sujeita a distorções e reinvenções ao longo das nossas vidas. Muitas lembranças são re-interpretadas sob novas perspectivas, reflectindo a intrincada teia da nossa jornada pessoal.

Para empreender a minha narrativa neste livro, foi necessário que eu reconhecesse a natureza subjectiva da memória, como um ponto de partida. Somente ao abraçar essa subjectividade, pude buscar uma maior compreensão da minha própria história e daquelas histórias que se entrelaçaram com a minha. Nessa permanente reflexão, aprendi que o respeito pela veracidade dos factos passados constitui a maneira mais autêntica de viver em Paz comigo próprio no presente.
Em meio aos diversos conflitos que marcaram a história de Angola, destaca-se, sem dúvidas, o período turbulento agora retratado.

Quando chegou à Angola, para realizar uma pesquisa sobre a guerra civil (1975-2002), o jornalista britânico Justin Pierce tentou entender, através de inúmeras entrevistas com ex-militares, de que forma eles se tinham integrado em movimentos políticos rivais, tendo chegado à surpreendente conclusão que falar do passado é um tema bastante sensível para os angolanos. Agora, ouve-se também dizer que, em Angola, até o próprio passado se tornou imprevisível.

Com base nessa inquietante realidade constatada por Pierce, eu preferi aguardar. Passaram-se anos de interminável reflexão, quanto à necessidade e a oportunidade de esgravatar uma ferida que, em boa verdade, sangra até hoje no coração de inúmeras famílias angolanas. Foi tempo de esperar que o próprio tempo dissipasse o dilema ético, de trazer à tona eventos inusitadamente violentos e traumáticos para muitas pessoas que nos rodeiam.
Trata-se de relatos, nos quais, alguns protagonistas ainda se encontram vivos e inseridos na vida da nossa pacata comunidade, onde nos cumprimentamos todos os dias.
Entendemos que se pode enquadrar o livro na literatura de guerra, se a entendermos como o conjunto de textos de ficção, relatos, crónicas, testemunhos e outros registos ligados ao tema e não unicamente às obras-primas mundiais.

Em nome da verdade, nunca tive a pretensão de escrever um livro apologético da guerra em Angola, baseado no estereótipo dos westerns, no qual os heróis acabam sempre por vencer os índios barricados do outro lado.

Por essa elementar razão, decidi esperar até que a fruta amadurecesse e soprasse o vento que a merecesse, pois, existe sempre uma razão imperativa, quando se decide escrever um livro.
Como atrás referi, eu tinha estabelecido como marco incontornável para escrever acerca da guerra em Angola, o estrito respeito pela verdade. Assim, ganharia o "timing" suficiente para apartar-me da injustificável tendência da apologia da guerra, contada unicamente pelos vencedores.

Foi, de facto, um tempo precioso, marcado por incontidas ânsias e múltiplas tentações, de trincar o fruto fora de época. Mas foi tempo que me permitiu, também, agregar mais valores morais e éticos ao processo reflexivo, quanto à genealogia do drama humano que representou o conflito angolano.
Em simples palavras e, parafraseando José Saramago, foi necessário sair da ilha para ver a ilha. De outra maneira, jamais teria conseguido lidar com o paradoxo da transposição da "fronteira da incerteza", quanto aos efeitos do livro na psique da sociedade benguelense, em particular, e na angolana, no seu geral. E até da própria Humanidade, para sermos mais precisos.

A primeira vítima a tombar numa guerra é a verdade. Por essa razão, o livro está ilustrado com fotos que atestam alguns acontecimentos. À propósito, os ingleses usam a expressão " a picture is worth a thousand words", certamente, baseada no sábio proverbio de Confúcio, para transmitir a ideia do poder da comunicação através de imagens. O compromisso com a narração objectiva dos factos está alicerçada nas fotografias, que acompanham os textos.

As fotografias constituem impressionantes e fiéis testemunhos de quase tudo que está explanado no livro. Todas as fotos são de minha autoria. Em determinadas ocasiões, foi necessário arriscar a vida para conseguir tais registos, que certamente ficarão para a história. Alerto que algumas imagens são susceptíveis de melindrar os leitores mais sensíveis.

Em nome da Humanidade e dos seus subsistentes valores, não tive alternativa que justificasse a não publicação das referidas fotografias. Pelo facto, peço aos leitores do livro a indulgente compreensão.
Para as vítimas mortais, tanto civis como militares do conflito, nada mais resta, senão dedicar súplicas e orações ao Criador, para que as suas almas descansem eternamente no esplendor da Paz, na eterna misericórdia e no genuíno perdão.
*Advogado e Jornalista