Fiquei mudo. Que dizer? O medo (e a revolta) estava estampado no seu rosto. Ela tinha de se levantar todos os dias de madrugada para apanhar o táxi, ainda o Sol não tinha esfregado os olhos. Pois tinha de vir trabalhar do outro lado da cidade. Era um caminho solitário, pelas ruelas do bairro, a uma hora em que ainda não há motoqueiros. E tinha de o percorrer sozinha, para garantir o pão na mesa para os seus. O mesmo caminho da malograda. Os mesmos perigos. E o que estava a acontecer não era habitual. O bairro tinha sido, até há bem pouco, tranquilo. Mas já não era.
- São miúdos!! - enfatizou. Às vezes se juntam. Quando a senhora ia a passar lh"arrancaram o saco, mas só tinha lá bidons vazios. Lhe pediram o telefone, e quando ela entregou, como era telefone de botão, lh"espetaram uma faca na barriga. Ela ainda gritou, mas àquela hora, os cânticos da igreja que estava ali ao lado, lh"abafaram os gritos de socorro. Deus não lh"ajudou. Quando lh"encontraram, ainda levaram no hospital, mas tinha perdido muito sangue... Às seis da manhã, quase a chegar na paragem do táxi... - repetiu.
- Mas vocês conhecem os jovens que andam a fazer isso? São lá do bairro?, perguntei.
- Sim! Lhes conhecemos. Os miúdos que andam a fazer essa confusão são mesmo lá do bairro. Mesmo o miúdo que matou a senhora, lh"apanharam. Mas o pai foi lá na esquadra, e ele já voltou na rua. Assim não dá. É por isso que às vezes...
Nem consigo expressar a receita que ela ditava. Era algo que só o desespero criado pela impotência poderia fazer surgir na cabeça de pessoas como ela, naturalmente boas.
O crime, em particular o violento, é uma consequência dos tempos de crise. É preciso retirar as pessoas que para ele são arrastados, do desespero social em que se encontram. Há, mor das vezes, razões profundas, de carácter familiar ou social, capazes de transformar alguém num revoltado capaz de cometer as maiores atrocidades. E são essas razões que é preciso combater. São as causas por trás desses comportamentos, que temos, como sociedade, de atacar. Criando, em primeiro lugar, empregos, para que a crise não seja tão profunda no lar de cada um. E, depois, mais programas sociais que envolvam as pessoas. Principalmente os jovens. Que os ocupem e lhes deem motivação para encarar o futuro de forma positiva. É nestas ocasiões que se justifica um Estado interventivo que seja o motor, que garanta acções que integrem as pessoas que, neste momento, se sentem desesperadas por se sentirem excluídas. E essa sensação de exclusão leva a que enveredem por caminhos ínvios, transformando-as em elementos que enfraquecem a coesão social, desestabilizando as comunidades onde estão enquadradas. E a sensação de insegurança pode levar a que essas comunidades se sintam atraídas (na cabeça das vítimas esse sentimento transforma-se numa obrigação) pela prática da (in)justiça pelas próprias mãos.
E não podemos deixar que a lei da selva prevaleça.