Hoje seriamos classificados pelo UNICEF como crianças-soldado, pois éramos muito jovens quando seguramos as primeiras armas. Eles definem criança-soldado qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade que tenha sido recrutada ou usada por uma força ou grupo armado, em qualquer capacidade. Só a titulo de curiosidade, em 2022 havia cerca de 20 mil crianças estavam engajadas em diferentes guerras em redor do mundo, segundo o relatório anual da ONU sobre a participação das crianças em conflitos armados. Portanto, não sendo novo, o fenómeno tende a perpetuar-se.

Em 1975, nós ingressamos voluntariamente. Do contingente do recuo de Benguela que chegou a Novo Redondo nos dias 6, 7 e 8 de Novembro havia combatentes mais novos que eu, como a Bela Russa, o Pioneiro Pirata, o Costinha, o Tiroteio. Dois anos mais velho, tinhamos o destemido Dias "Ngueta Mukuaxi", que viria a tombar em combate durante o ataque ao Sumbe em Março de 1983. Votada ao completo abandono, a Bela Russa morreu acometida por um cancer.

Do nosso grupo, localizados e em vida, apenas ficamos dois. Eu e o Francisco Caldeira. Certamente, mais uma dúzia haverá por aí embarrados ou esquecidos. Da forma como as coisas caminham, não estou certo se por cá ainda estaremos no próximo ano. Somos páginas a descartar de um passado que foi de glória, mas agora tem verdadeiros donos e senhores.

A roda do tempo continua a girar implacavelmente e, em cada giro, vai destapando impensáveis e cruéis metamorfoses, que apenas a espécie humana pode degenerar. De tudo nos foi dado a ver no decurso desses 48 anos. Impávidos, vimos devotos marxistas-leninistas, que estavam na dianteira dos vivas à revolução proletária, transformarem-se em juramentados latifundiários e novos capitalistas de primeiro grau. Mas isso são contas de outros rosários.

Também guardamos gratas recordaçoes dos dias dificeis de 1975. Lembro-me, particularmente, de uma conversa com o comandante M"beto Traça, no final de uma tarde de Segunda-feira, em Abril de 2011. Como não podia deixar de ser, o tema girou em torno daqueles acontecimentos, concretamente dos dramáticos dias em que as forças militares do MPLA, e um elevado número de populares, se concentraram na cidade de Novo Redondo, acossados por invasores das forças de Defesa da África do Sul que marchavam para Norte, tentando chegar a Luanda antes do dia 11 de Novembro.

Naquela altura, o camarada M"Beto Traça era o responsável do MPLA no então distrito do Kwanza-Sul, cuja capital era a cidade de Novo Redondo. O seu papel foi crucial na resistência contra o exército invasor racista. Era sobre isso que conversávamos naquele dia. Unicamente com o propósito de resgatar a memória dos filhos de Angola, que deram o melhor de si, incluindo a própria vida, para que a Independência fosse uma realidade. Foi o seu sacrificio que nos permitiu que tivéssemos uma bandeira a drapejar orgulhosamente em todos os recantos de Angola, símbolo da nossa inalienável soberania. E não foi fácil chegar até ao glorioso dia 11 de Novembro de 1975.

Como numa exposição, desfilam pela galeria da memória, figuras épicas como a lendária guerrilheira Bela Russa de "Cabelos-Côr-de-Fogo", o comandante Herculano Kassanje "Fundanga", comandante Kussy e outros combatentes, muitos anónimos, como os jovens do mini-suzuki metralhado entre Novo Redondo e o Quicombo, apenas dois dias depois do dia onze. Sucedem-se firmemente vultos de muitos soldados que serviram a causa e que hoje, mesmo tendo sido esquecidos por quem não tem legitimidade moral para fazê-lo, permanecerão vivos na nossa memória colectiva, como heróis de um tempo que marcou e que a própria História, um dia, inexoravelmente, resgatará.

Abracei por vonta propria esta luta árdua de tentar resgatar os momentos difíceis da nossa história recente, mas volta e meia vou-me deparando com inúmeras dificuldades e incompreensões várias. De pessoas que poderiam ser fontes de informação importantes recebi apenas evasivas, ou um"não te metas nisso, não tens negócios a tratar"? De outros, simplesmente, vi a porta a bater. Uns tantos nem se dignaram sequer a abri-la para ver quem estava a bater.

Então, como fica a nossa História? Vamos aceitar continuar a viver como sonâmbulos face ao nosso próprio passado? Como se fosse historicamente justo, mais tarde, contratarmos cooperantes para explicarem aos nossos netos e bisnetos as páginas que as várias gerações da luta angolana escreveram? Defendo que temos uma História transbordante de episódios de patriotismo e de entrega e hoje, em termos de angolanidade reconciliada, não interessa olhar o lado da barricada em que cada um esteve.
A conquista da nossa Independência constitui uma das mais notáveis epopeias de África. E se conseguimos a vitória, foi porque nos momentos decisivos, tivemos na vanguarda os melhores, verdadeiros homens de têmpera, combatentes destemidos, que tudo deram para que a Pátria nos embalasse a todos no seu regaço, como angolanos livres e dignos.

A História não se apaga! Recordo ouvir, durante as exéquias do presidente Neto, no dia 17 de Setembro de 1979, o elogio fúnebre lido pelo camarada Lúcio Lara. Houve uma frase que deveria um dia ser bem explicada aos mais-novos: "Camarada Neto, que ingenuidade a nossa, quando no incessante derrubar de barreiras que tem sido a nossa luta, pensávamos que eras invulnerável!" Era assim a revolução! Os homens transcendiam-se no esforço da luta e aparentavam serem imortais.

O Comandante M"beto Traça é um desses homens. Até hoje guardo a sua imagem, 47 anos depois.
Ao olhar os meus netos, sinto que os que actualmente estão ao leme da nação têm um desafio a superar. Vivemos num contexto já de si complicado e que, por vezes, nos surpreende negativamente pela curta memória de alguns, que pensam que a Independência foi comprada na praça, ou uma dádiva que veio do estrangeiro. Claro que o tempo passou e vai continuar a passar na sua marcha inexorável. Penso que se não deixarmos o registo desses eventos, as gerações futuras não terão referências que as façam sentirem-se orgulhosas dos seus maiores.

A nossa saudosa Bela Russa, essa menina- mulher-combatente. Até hoje os filhos se encontram entregues à sua sorte, sem que alguém de direito os ajude por tudo o que sua mãe fez. Em Benguela havia outras guerrilheiras, a Carlota, a Mona Caxito, Bela Mauser, a Chinda (mulher do Kassanje), a Bety e outras. Felizmente algumas sobreviveram a todas as agruras e estão entre nós, dando o seu contributo em diversas áreas.

Uma vez conversei com o pai do comandante Kassanji "Fundanga". O mais-velho Kassanji trabalhava no palácio do governo em Benguela. Nessa condição, serviu quase todos os comissários provinciais nomeados pelo MPLA. Ele nunca reclamou nada, até à sua morte. Certo dia recebeu das mãos de um comissário provincial, uma bicicleta. Gratificante recompensa, não hajam dúvidas
Os nossos kotas nos ensinaram. Aqueles que não sabem de onde vêm, não saberão para onde ir. Os mais- velhos disseram mais: qualquer que seja a actividade na vida, Homem que é Homemdeve comparar-se ao touro, que deixa no chão as marcas da sua passagem. Nunca se deve confundir Homem de verdade, nem com passarinho, nem com lagartixa. Que me perdoem as lagartixas e os passarinhos.

*Jornalista e advogado