Volvidos 44 anos, não cabe, como sinalizou João Lourenço, desenterrar agora velhos fantasmas. Sem apontar o dedo a culpados, como também sinalizou o Presidente, cabe antes abraçar a reconciliação e, sem medos e sem ressentimentos, desbravar o caminho de uma verdadeira catarse nacional.
Reconhecido o buraco negro aberto à volta de uma das páginas mais sangrentas da nossa existência como país independente, com a declaração de perdão e com o pedido público de desculpas à Nação, João Lourenço poderá, neste capítulo, entrar definitivamente para a História.
Fê-lo no quadro da explosão de um processo específico de intolerância política propulsor de uma guerrilha verbal incendiária que acabou por provocar a fractura da estrutura interna do partido - MPLA - que, em Angola, há quase meio século, se vem confundindo com o Estado.
Esse processo nada tem a ver, porém, com o conflito armado que desembocou na nossa guerra civil, nem com as divergências de natureza religiosa que envolveram a "Sexta-feira Sangrenta" ou a sublevação do Monte Sumi de Kalupeteka.
João Lourenço fê-lo em nome de todos os angolanos, através de um gesto que podendo não colher o consenso de todas as partes, tem, porém, o mérito de ajudar a materializar um dos mais nobres desígnios de Joaquim Pinto de Andrade, um dos grandes ícones do nosso nacionalismo e um inquebrantável defensor dos direitos cívicos: "a pacificação dos espíritos dos angolanos."
Dir-se-á que há ainda um longo e complexo caminho a percorrer. Dir-se-á que, tendo este processo duas faces, haverá, porventura, outras questões por levantar partindo do pressuposto de que o reconhecimento de mortes implica necessariamente o reconhecimento de quem matou.
Desde logo, como sustenta o jurista António Paulo, poder-se-á, a partir desse pressuposto, perguntar:
"Quantos membros da Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação das Vítimas de Conflitos Políticos (CIVICOP) leram sobre o 27 de Maio, antes de apresentarem as "soluções" que apresentaram? Quantos livros leram? Com quantas pessoas conversaram?
Aqueles que cometeram crimes, para afastar tentações para a vingança, poderão ser perdoados ou beneficiar até de um indulto por lei do Parlamento, mas ser-lhes-ão suspensos temporariamente alguns direitos civis e retiradas condecorações e outras atribuições suplementares do Estado?
Tendo sido reconhecida a existência de matanças, o país está preparado para que os tribunais recebam processos de responsabilização civil para eventual indeminização?
Este processo não deveria ter sido precedido de um acto legislativo? Não tendo o Presidente sido eleito "sozinho", o Parlamento não deveria participar nesse processo e partilhar a responsabilidade com o Presidente"?
Poder-se-ão, legitimamente, levantar estas e outras questões, mas o primeiro passo foi dado e quem teve o arrojo de o fazer - enfrentando, por dentro, a orfandade de um nacionalismo primário anacrónico e, por fora, as labaredas de um radicalismo raivoso - não pode agora deixar de ser encorajado.
O primeiro passo deve, por isso, ser alavancado como mola impulsionadora para a criação das bases de um Estado democrático e de direito sustentado no enterro, em definitivo, da hegemonia do pensamento único, na prevalência da diferença de opiniões políticas e na aceitação da pluralidade intelectual.
Fazê-lo, como defende um estudioso do direito, pressupõe, porém, "saber conciliar a reconciliação com uma disputa política onde não haverá ausência de conflitos e de acusações recíprocas ou a confrontação e exploração das fraquezas de uns e outros".
E pressupõe ainda reconhecer que "sendo a questão étnica um factor a ter em conta no ajustamento estrutural da economia e na retribuição do rendimento", a reconciliação é chamada a fazer um investimento sério e profundo na "descentralização administrativa onde todos se sintam representados e todos se sintam capazes de responder aos desafios da diversidade cultural para se irem eliminando gradualmente as causas que podem redundar em tentativas de fragmentação ou de violência étnica".
Se construir a Nação - um dos próximos grandes desafios das nossas lideranças políticas - pressupõe despoluir e reconstruir as mentes, esse passo de gigante (crucial para cicatrizar velhas feridas) só será alcançado se alargarmos o espectro da reconciliação a todas as latitudes da nossa vida pública.
Depois de termos assistido ao desenrolar de um outro longo e igualmente complexo processo de entendimento e de reconciliação entre as partes - Governo e UNITA -, que durante mais de 30 anos protagonizaram uma guerra civil sem quartel, e "quebrado" agora "o primeiro galho", como destacou Reginaldo Silva, talvez tenha chegado finalmente a hora de nos atermos a algumas preocupações que poderiam configurar uma espécie de Carta Magna de Harmonização Nacional na Diferença:
1 - Despidas de cores partidárias, todas as forças vivas da Nação deveriam acordar a criação imediata de um "Pacto de Regime" para a coabitação pacífica de todos os angolanos independentemente da bandeira partidária que cada um pretenda içar.
2 - O regime deveria encorajar a abertura mais alargada dos meios de comunicação social públicos a toda a sociedade e a todos os partidos políticos com justiça e equidade, isenção e equidistância e a cultura do contraditório e do senso crítico para resgatar a credibilidade perdida.
3 - Os órgãos de comunicação social deveriam, nesta medida, também abster-se de fazer cobertura de actos de propaganda hostil promovidos pelas forças políticas, desafiando as suas lideranças a recorrerem aos órgãos de justiça apropriados para dirimir os conflitos entre si.
4 - O regime deveria abrir mão de uma antiga disposição anti-democrática e repôr a função fiscalizadora do Parlamento sobre os actos da governação para assegurar a correcção e prevenção institucional dos erros e das falhas do Executivo.
5 - Na atribuição das dotações orçamentais aos órgãos de defesa e de segurança, o regime deveria conferir total transparência à discriminação das actividades correspondentes aos valores disponibilizados para que, através de "sacos azuis" alojados em misteriosas "rubricas especiais", as estruturas castrense e securitária, não continuem a ser capturadas pelo gangsterismo financeiro de gente miserável, venal e sem escrúpulos, que se diverte alegremente à volta do circo da roubalheira descarada e de escandalosa impunidade.

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