Não sendo esse o único dos seus amores, uns e outros, partilham alegremente outros horrores, mas, fechando-se sobre si próprios, não deixam de evidenciar a perda de chama ao avaliarem mal o pulso às comunidades e ao subestimarem os seus anseios, a nova realidade imergente e a pujança dos movimentos sociais modernos.
Quem governa ou faz oposição já não dispõe a seu belo prazer das peças de um novo tabuleiro político. Já ninguém joga sozinho. O país mudou, a comunicação política também evoluiu e há hoje em cena novos actores e novas visões sociais.
Os partidos tradicionais têm de perceber que são chamados a adaptar-se a uma nova realidade e não pensar que a nova realidade é que tem de se adaptar a eles. Se não perceberem isso arriscam-se a nadar com os crocodilos.
Por lá, a tribuna de honra está, no entanto, ainda abarrotar de políticos com falta de densidade política e de rapidez intelectual. O camarote está cheio da inconsistência argumentativa das suas falanges de apoio e de um seguidismo cego e irracional.
E a bancada central está repleta da ausência de visão crítica, encharcada de falta de integridade moral e inundada com a nudez da verticalidade comportamental.
No peão, ao sol e à chuva, a imensa maioria dos espectadores, flagelada pelos ventos da miséria e da fome, finge-se atenta ao desenrolar do jogo, mas, estando este carregado com tanto cinismo e ornamentado com tantas mentiras, há muito deixou de acreditar nos produtos insonsos que, em série, vem saindo dessas fabriquetas políticas em que se converteu uma boa parte dos nossos partidos.
O que o químico francês não imaginava é que, três séculos após as suas descobertas, enterrado por aqui o machado da guerra, as elites angolanas haveriam de cultivar outro tipo de horrores, os quais, agora, estão a colocar o país na agonia dos cuidados intensivos.
Por aqui, aposta-se, desta forma, na tentativa de imposição de certos horrores políticos e sociais que se estão, estranhamente, a amancebar com misteriosos amores.
Depois de nos termos tornado famosos por causa da nossa vocação para a guerra, a seguir a nossa principal vocação continuou a ser a negação do pensamento alheio, a rejeição liminar da crítica, a promoção do clientelismo, a ascensão da mediocridade e o esventramento da paz através de feridas sociais que podem vir a tornar-se numa perigosa ameaça à estabilidade.
Fazendo parte do nosso quotidiano e comungando do mesmo destino, nos dois lados da barricada, a vários ritmos e tons, as nossas elites tendem a fabricar políticos para quem, como adverte o escritor inglês, William Hazlitt, "a roupa é a parte mais importante da pessoa".
Colocando-se numa situação indefensável, nestas circunstâncias, esses políticos não se apercebem, mas, ao abraçarem a glória pessoal como resultado da sua acomodação à imbecilidade, "acabam por valer tanto quanto a roupa".
Agora, às nossas elites já não basta recauchutarem os pneus; é preciso substituí-los em toda a linha para que possam ajustar-se aos desafios políticas, económicos e sociais da corrida de fundo que se avizinha.
É preciso substituí-los para que, como diz uma amiga minha, o verbo mudar não continue por aqui a ser roubado e para que a sua conjugação não desapareça do nosso dicionário político.
É preciso substituí-los para que não percamos o sonho e não deixemos de acreditar que a mudança é possível. Sim, a mudança é possível, mas para o ser na verdade, como alerta Rafael Marques, é preciso pôr fim à desordem funcional instalada em vários sectores do MPLA e a ansiedade descontrolada e à luta de egos instituída na generalidade dos partidos da oposição.
Não havendo milagres, só alcançaremos, porém, a mudança se houver vontade colectiva para desmantelar a influência e o poder de determinados grupos que insistem em querer continuar a manipular os cidadãos e em querer continuar a colocar o Estado de cócoras perante a imposição dos seus interesses monopolistas.
Só alcançaremos a mudança se eliminarmos da nossa paisagem a "bipolaridade política" que anda a corroer algumas das nossas lideranças, substituindo-as por gente capaz de olhar para o país sem estar prisioneira das lentes partidárias.
Só alcançaremos a mudança se formos capazes de eleger no nosso universo partidário - quer seja do regime quer seja da oposição - quem se mostre à altura de governar em nome do Estado e no exclusivo interesse do Estado, enterrando o promíscuo circuito que faz do Estado uma sucursal do partido.
Só alcançaremos a mudança se abandonarmos a folclórica tendência para prometer o vazio como o fizemos no passado quando - nas duas últimas décadas - em grandes parangonas jornalísticas, garantíamos solenemente ao mundo o céu e a terra.
Só alcançaremos a mudança quando deixarmos de publicar as manchetes que, desde 2004 até 2017, pincharam a primeira página do "Jornal de Angola":
"Malária em Angola em vias de extinção"; "Angola vence a pobreza"; "MPLA acaba com a fome nos próximos quatro anos"; "Fim da importação de gás"; Angolanos terão passaporte electrónico em 2018"; "Províncias de Cabinda e do Zaire podem estar ligadas por estrada em 2011"...

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