Devoradas até as crias, há mais de 20 anos que o galinheiro-mor não tem escapado à voracidade das raposas que, misteriosamente, vem desmantelando o arame farpado e assaltado os cofres do principal centro do poder em Angola.

Arrombada a casa, toca agora de trancar as portas. É providencial que assim se proceda, mas não é a primeira vez que o fazemos e nada garante que venha a ser a última.

Rodeado pelo mesmo tipo de "minas e armadilhas" que, nos últimos 15 anos, se encarregaram de mutilar a lucidez e de estrangular a estrutura de mando governativo do seu antecessor, este Presidente acabou também por ser traído pelo rastilho de "fogo amigo", que, astuto, não hesitou, igualmente, em cuspir as suas labaredas sobre as cercanias e o interior do Palácio.

Para se livrar de eventuais queimaduras de terceiro grau, João Lourenço defende agora uma "mudança radical" na Casa de Segurança da Presidência da República. O Presidente faz bem em pugnar por essa mudança, mas, pecando por ser tardia, ela pode vir a enfermar de algumas condicionantes.

Por um lado, ela será sempre inconclusiva e parcial se estiver circunscrita apenas a um dos poderes dentro do próprio poder, que é como tem funcionado aquele órgão de vertente militar e securitária da Presidência da República.

Por outro, desconfio sempre dos radicalismos, sobretudo quando impulsionados pelo efeito de uma forte pressão eleitoralista.

Com a remissão dos pecados capitais de Maio de 77, João Lourenço acaba de dar um passo de gigante rumo à lenta exorcização dos espíritos amaldiçoados pela deriva assassina que, entre aquela data e Abril de 1979, de uma ponta a outra enlutou o País.

Feita essa remissão, convirá sempre estar atento ao legado de Antero de Quental para não cairmos na tentação de "pretendermos impor as nossas ideias, mas simplesmente expô-las; não pedir a adesão das pessoas que nos escutam", mas simplesmente abrir as nossas ideias à "discussão".

Precisamos, pois, de fazer previamente esse exercício, para que, assumindo os erros de governação que andamos a acumular ao longo de quase meio século, possamos primeiro "emendar" o nosso comportamento.

E, na fase seguinte, com a urgência imposta pela história, precisamos de nos regenerar para que possamos depois começar a eliminar racionalmente "as causas da nossa" crescente "decadência".

"Ousar mudar", como desafiava Apusindo NHarari numa excelente crónica publicada há uma semana no "Jornal de Angola", pressupõe, deste modo, "deixarmos de estar amarrados a velhas práticas, prosseguindo por trilhos antigos, mesmo após termos percebido que não chegaremos onde queremos".

Pressupõe também "deixarmos de reproduzir modelos inadequados, bloqueados pela inércia ou pela falta de coragem de inovar". E pressupõe igualmente deixarmos de "não cuidar de bem saber o que queremos ou simplesmente refazendo (pior) o que (mal) já fazíamos".

Ou ainda, deixarmos de "imitar o que não entendemos". Por isso, aquele académico vai mais longe e adverte que "o mero copiar é um processo de imitação passivo onde raramente se aprende e o que precisamos é de nos apropriarmos de bons exemplos, apreendendo-os, enriquecendo-os, tomando-os e usando-os como plataformas para o desenvolvimento dos nossos próprios caminhos".

Um pouco de tudo isso andamos a (não) fazer ao longo da nossa existência como País independente. É, pois, hora de parar e de olhar para a frente com novas lentes de contacto.

Se é saudável abraçar a mudança defendida pelo Presidente, essa intenção por si só não basta. É preciso mudar sim, mas, ao fazê-lo, precisamos de fazer uma clara separação das águas.

Logo, se não se pode esperar por atitudes democratas por parte de quem abomina a democracia, também não se pode esperar por mudanças por parte de quem sempre se opôs, ainda que de forma subtil, a qualquer tentativa de mudança do actual modelo de governação. Logo, só pode haver mudança desse modelo se houver também mudança de actores.

É hora, por isso, de apostar no recurso a novas mentes, deixando de ter medo daqueles que pensam e agem de forma diferente da nossa. É hora de deixarmos de nos sentir assustados com a sombra do "Outro".

Não detendo o Palácio, por ser Palácio, a nata da inteligência nacional e havendo no País outros saberes fora da "caixa", como adverte Graça Campo, é hora de o Presidente começar "a ouvir e a aceitar outras vozes" que, afinal, fazem parte desse outro aliado que é o "Outro".

Mas, o "Outro" aqui não pode continuar ainda a ser visto, por ambas as partes, como o eterno inimigo do passado que, a muito custo, estamos, aos poucos, a ser forçados a vê-lo e a tratá-lo por favor como adversário político.

O "Outro" aqui, afinal, tanto existe fora como existe dentro das nossas quatro linhas, sejam elas partidárias, sociais ou académicas.

O "Outro" aqui é aquele que, nestes e noutros espaços, professa ideias, princípios e valores que sendo distintos dos nossos, em vez de serem rechaçados, devem antes ser objecto de debate.

O "Outro" aqui em vez de ser afastado, espezinhado, perseguido e até odiado, deve antes fazer parte da busca de uma plataforma de ideais contrárias às nossas.

Com a contribuição das competências, dos princípios e dos valores do "Outro" temos de aprender que mais facilmente poderemos, desta forma, empreender a tão desejável mudança.

Rodeado, como uma ilha, por todos os lados, por juristas que, ao longo de anos, vêm tendo um papel preponderante na montagem da nossa engenharia governativa, para empreender a mudança, o Presidente precisa de passar a ter ao seu lado também outra raça de colaboradores. Precisa de se rodear e de dar ouvidos a colaboradores ligados às ciências políticas.

De colaboradores que, dotados de sentido de construção crítica, sejam capazes de ajudar a montar e a articular um novo modelo de relação entre os vários actores da governação e os governados.

De colaboradores que sejam capazes de resistir à tentação de pensarem e de decidirem pelo chefe, de agirem pela vontade hipotética do chefe e de se comportarem segundo o dia da semana, a pose e o olhar do chefe.

De colaboradores que, de forma competente, sejam capazes de transmitir livre e criticamente o que pensam e que, podendo não agradar ao chefe, acabam por ser os que melhor servem os interesses da governação. É desse género de colaboradores que mais precisa o Presidente.

Mas, se o Presidente precisa deste género de colaboradores, a mudança precisa de muito mais, sob pena da intenção presidencial não passar disso mesmo - uma mera intenção.

Logo, só mudaremos se formos capazes de celebrar um pacto de regime estruturado na base de uma visão crítica da governação aglutinadora de consensos em torno das políticas públicas mais estruturantes e determinantes para o futuro do País, sem excluir o pensamento e as vozes minoritárias discordantes.

Só mudaremos se, tomando a educação como a base do desenvolvimento da sociedade e não a agricultura como sustentava Agostinho Neto, formos capazes, desde logo, de avançar para a construção de um novo edifício no domínio educacional e do ensino transversal a várias gerações.

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