Até há cerca de uma década, década e meia, principalmente após o advento da democratização pluralista e do sistema partidário, a maioria dos golpes ocorria por razões fúteis ou por motivos de "engrandecimento pessoal", nomeadamente por militares.
Antes deste período, a maioria dos golpes de Estado ocorria devido a problemas sociais, implantação e sistemas políticos ou por interesses externos. E a grande maioria - ou a quase totalidade -, os Golpes tinham origem na estrutura que melhor e mais bem preparada está organizada: as Forças Armadas, em particular no exército.
Ora, desde (2019) 2020/2021 até ao presente, já ocorreram cerca de nove golpes de Estado, sendo que a maioria teve com player principal as Forças Armadas; só no Chade, o - eventual - golpe terá sido palaciano, ainda que o autor seja um militar.
Vejamos, sinteticamente, os golpes de Estado que ocorreram entre 2019 e este ano:
2019 - No Sudão, a 11 de Abril, depois de vários protestos civis, militares liderados pelo ministro da Defesa, Awad Ibn Ouf, derrubam o Presidente Omar al-Bashir. Foi criado um Conselho Militar interino liderado pelo tenente-general Ahmed Awad Ibn Auf;
2020 - No Mali, em Agosto, golpe contra o Governo do Presidente Ibrahim Boubaka Keita (recentemente falecido), liderado pelo coronel-major Ismael Wagué;
2021 - (6 golpes de Estado), a saber: no Níger, a 31de Março, tentativa de golpe falhada, dois dias antes da posse do Presidente eleito Mohamed Bazoum; no Chade, a 20 de Abril, após suposta morte (indiferenciada) do Presidente Idriss Déby Itno, o general Mahamat Déby (filho de Idriss Déby) assume o poder e instituiu o Conselho Militar de Transição; a oposição considera que esta tomada de poder foi um golpe institucional; no Mali e em menos de um ano depois, novo golpe de Estado, a 24 de Maio, coronel Assimi Goita lidera golpe contra Governo de transição do Presidente Bah N"daw e do primeiro-ministro Moctar Ouane; no Sudão e em cerca de um mês, ocorreram dois golpes ou tentativa de golpe; depois do Golpe falhado de Setembro, a 25 de Outubro, o general Abdel al-Bouran lidera golpe militar contra o Governo do primeiro-ministro Abdalla Hamdok e põe fim ao Conselho Soberano do Sudão (tinha sido criado após golpe de 2019); e na República da Guiné, a 5 de Setembro, o Coronel Mamady Doumbouya lidera Golpe contra o Governo do Presidente Alpha Conté;
Já este ano de 2022, tivemos o primeiro golpe de Estado; no Burkina Faso: de 23 e 24/Janeiro, ocorre um golpe militar contra o Presidente Roch Marc Kaboré: é líder do poder o tenente-coronel Paul-Henri Damiba.
Como se pode verificar, a maioria dos golpes, excepto o caso do Sudão, ocorreu em países francófonos do chamado G5 do Sahel (criado sob proposta francesa e que agrupa Burkina Faso, Chade, Mali e Níger), e onde a francofonia tinha preponderância política e militar.
No caso militar, nesta região, e devido ao recente golpe no Mali, a presença francesa agrupada na "Operação Barkhame" foi descontinuada por ordem de Paris, após o golpe de Maio de 2021 (terminou a sua operacionalidade em Agosto de 2021).
Esta operação militar francesa, aliada à europeia "Operação Task-Force Takuba", estabelecida em Março de 2020 (são cerca de 20 países europeus, dois dos quais não fazem parte da União Europeia: Reino Unido e Noruega), procurava manter a integridade maliana - devido às tentativas de secessão da parte Norte de Azawade, liderada pelo Movimento de Libertação Nacional do Azawade, de predominância tuaregue - e apoiando a MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali, em inglês, United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in Mali) no combate contra as operações rebeldes dos islamitas do AQIM e (Al Qaeda no Magrebe Islâmico), do Ansar al Dine; e do ISIS/Daesh.
Durante muitos anos, durante décadas, a maioria dos golpes que ocorriam em África, ocorridos por intervenção militar, dizia-se que tinham suporte norte-americano, principalmente da CIA; mais tarde, ainda que nunca tenham sido assumidos como tal, começaram a ocorrer alguns golpes de cariz socialista e que seriam apoiados pelo NKVD/KGB (casos da Etiópia, a 27 de Setembro de 1974,o imperador Hailé Selassie foi deposto por um golpe militar de inspiração marxista, que instituiu um Conselho Provisório de Administração Militar, liderado pelo oficial militar Mengistu Haile Mariam, que institui a República Democrática Popular da Etiópia; e no Burkina Faso, quando o capitão Thomas Sankara, tornado marxista e pan-africanista, em Agosto de 1984, provoca um putsch contra o regime vigente e transforma a República do Alto Volta na República do Burkina Faso). Actualmente, a França e a Rússia - essa através dos paramilitares (antigamente, denominavam-se de mercenários) russos do Grupo Wagner (ou Grupa Vagnera) que se têm disseminado pela área, a partir da Líbia, - são visadas por especialistas africanos como os principais mentores dos actuais golpes de Estado.
É certo que, seguindo as directivas da União Africana que critica e verbera todas as tentativas - concretizadas, ou não - de golpes de Estado, em África, as diferentes comunidades económicas regionais, no caso a CEDEAO, têm condenado estes golpes e sancionado os respectivos Estados afectados, com sanções sobre os autores e sobre os países alvos. Todavia, também é verdade que sempre que ocorre um golpe de Estado na área, é vermos o Senegal e a Nigéria - as potências-directoras da CEDEAO -posicionarem-se na liderança de um grupo que visita os países "condenados" e conversam com os líderes "sancionados", com vista à solicitação de rápida normalização institucional do país alvo do golpe. Ou seja, criticam, sancionam, mas conversam: resumindo, acabam por "validar" os golpes.
Hipocrisia da liderança a que, em África, não conseguimos fugir. Nem com novas lideranças, mais politicamente instruídas e, algumas, laureadas: veja-se o actual caso da liderança etíope do Primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali...
NOTA complementar: Já depois de ter terminado este texto, somos assaltados com notícias de um possível golpe de Estado na Guiné-Bissau, com um ataque contra o palácio do Governo onde o Presidente Umaro Sissoco Embaló e o primeiro-ministro Nuno Nabiam estavam reunidos com outros membros do Governo. As primeiras notícias radiofónicas dizem que o ataque teria sido levado a efeito por elementos à paisana e armados. Todavia, outros órgãos e agências de comunicação social, como a rádio Deutsche Welle, afirmam que o palácio estará cercado por militares e que pode estar em acção um golpe de Estado. Não esqueçamos que, entre Embaló e Nabiam, tem existido certo e pouco agradável atrito institucional.
Acompanhemos mais esta - mais um entre muitos que o País já sentiu - tentativa de golpe e que o mesmo mais não seja que um mero assalto não institucional...
*Investigador Integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL (CEI-IUL) e Investigador-Associado do CINAMIL e Pós-Doutorado pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto**
** Todos os textos por mim escritos só me responsabilizam a mim e não às entidades a que estou agregado.