1 - Estamos mais próximos do fim dos processos eleitorais fraudulentos?

Se compararmos os quatro últimos pleitos eleitorais, isto é, desde as eleições de 2008, veremos que o controle popular sobre as eleições tem vindo a apertar-se. Temos hoje várias organizações da sociedade civil que se dedicam especificamente a essas matérias e que regularmente se apresentam como observadores nacionais dos processos eleitorais. As eleições de 2008 foram de longe as mais irregulares da curta história eleitoral angolana, mas em 2012 e 2017 os golpistas de costume já tiveram que ser mais discretos. Estamos lembrados da contestação generalizada de que foi objecto a Sra. Suzana Inglês, postulante ao cargo de Presidente da Comissão Nacional Eleitoral.

O processo que nos conduziu às eleições do dia 24 foi um cortejo de violações à lei, cometidas à luz do dia, sem o menor pejo pelas autoridades, que a todo custo tentam manter o poder. Estes golpes reiterados à Constituição e à lei foram oportunamente denunciados não só pelos partidos da oposição, mas também por organizações da sociedade civil e da Igreja Católica. Em muitos casos foram impetrados processos junto das competentes autoridades judiciais, cuja resposta foi sempre ou o silêncio tumular, ou então, longe de realizar a justiça, acabando por exaltar a impunidade. Em vez de pautar pela correcção dos vícios flagrantes do processo, a opção das autoridades foi pelas ameaças, veladas ou não, aos concorrentes. O discurso do ódio e a ameaça aberta de retorno à guerra são expedientes vezes sem conta utilizados para fazer a chamada "fuga para a frente", estratagema abusivamente utilizado pelo Partido-Estado. Apesar deste percurso sinuoso, a UNITA considerou que ainda era possível defender o voto popular no último reduto, isto é, nas Assembleias de Voto, com delegados de lista em quantidade, e adequadamente treinados, estruturando uma contagem paralela eficiente e a pressão popular no sentido da afixação das actas-síntese nas respectivas assembleias.

Apesar de nem tudo ter saído feição, a estratégia de defesa do voto revelou-se tão eficaz que levou a uma sucessão de trapalhadas da CNE que descredibilizaram, a priori, os resultados apresentados. A CNE, comandada pelo Partido-Estado, ficou de tal maneira exposta que passou a actuar na defensiva, parecendo mais um competidor do que propriamente um árbitro. Por isso mesmo os relatórios das principais missões de observação nacionais e internacionais colocaram acento tónico em críticas cirúrgicas dirigidas, sobretudo à CNE ao invés do habitual "apesar de tudo, as eleições podem ser consideradas livres, justas e transparentes". Se estas lições forem devidamente apreendidas, com o controle popular cada vez mais apertado, fruto de uma tomada de consciência cidadã crescente, estaremos com certeza mais próximos de alcançar o ideal de eleições livres, justas e transparentes.

2 - O extremar da bipolarização em Angola

Estas eleições tornaram mais evidente a bipolarização em Angola. Como se pode depreender de democracias bem mais consolidadas no mundo, a bipolarização por si só não é um obstáculo à democracia, mesmo porque no interior das forças políticas existem, geralmente, correntes diversas que se digladiam visando fazer prevalecer o seu ponto de vista. No caso de Angola, pela sua história e multidiversidade, deveria haver certamente espaço para outros discursos e vozes políticas fora dos partidos hoje hegemónicos. Não nos números inflacionados dos anos 90, mas, certamente, deveria caber outros discursos e vozes políticas. O que impede efectivamente o brotar desta multivocalidade política, esta pluralidade do discurso político é o cancro instalado do Partido-Estado, ao qual a UNITA tem oferecido uma resistência tenaz e, sobretudo, o facto de esta contenda ter degenerado, por muitos anos, num conflito militar atroz. No fundo, esta contenda não ficou de todo resolvida com o conflito militar, mas, a bem da Pátria, foi transferida para a arena política. Neste enfrentamento entre uma força política que tenta a todo o custo impor em Angola a doutrina do pensamento único e outra que resiste tenazmente a esta imposição, sobra pouco espaço para a emergência de alternativas políticas viáveis fora deste arco.

Nestas eleições, o Partido-Estado tentou a todo custo inibir o surgimento de forças políticas com potencial competitivo considerável, impedindo, por exemplo, a legalização do projecto político PRA-JA-Servir Angola e buscou de todas as formas fragilizar a UNITA, que em 2019 elegeu para a sua liderança Adalberto Costa Júnior (ACJ), cuja popularidade crescente, sobretudo entre os jovens, é inegável e representou sempre uma ameaça ao poder instituído. Para o efeito, o Partido-Estado propôs-se a combater ACJ até a exaustão, utilizando todos os recursos do Estado disponíveis, tais como o bloqueio no acesso à comunicação social tutelada, à utilização de instituições de soberania nesta luta inglória, sacrificando, inclusive, a credibilidade destas instituições, enfim um sem número de estratagemas que acabaram por expor um regime nada comprometido com o Estado Democrático e de Direito e que mais parecia uma autocracia. O facto é que, longe de ferir a popularidade de ACJ, esta estratégia tola do Partido-Estado fez mais é crescer a popularidade do visado.

A UNITA, por seu turno, no seu dever de resistência às pretensões hegemónicas do seu eterno adversário político, optou por uma estratégia congregadora juntando o estilhaçado Projecto Político PRA-JA, o Bloco Democrático (BD) e forças da sociedade civil numa ideia de alternância a que se designou Frente Patriótica Unida (FPU). Esta ideia, inicialmente desprezada pelo Partido-Estado, veio revelar-se, entretanto, como um impulso muito grande para a alternância e conquistou simpatias em vários quadrantes da sociedade. Isto contribuiu ainda mais para a bipolarização do debate político. A polarização extremada tem o condão de empobrecer o debate, abafando outras vozes, que, se bem escutadas, podem de facto representar um contributo incomensurável na construção desta Nação que se pretende diversa.

Portanto, os instintos anacrónicos do Partido-Estado para impor em Angola, país onde a diversidade é a maior divisa, um pensamento único só vieram acirrar a bipolarização que ficou ainda mais evidente nas eleições de Agosto último.

3 - A nova geografia eleitoral em Angola

As sondagens realizadas por diversas entidades, como o Projecto de cidadania MUDEI, Afrobarómetro e Angobarómetro (sobretudo estes) já vinham antecipando alterações significativas na geografia eleitoral. Com efeito, estas sondagens vinham indicando uma simpatia crescente da UNITA nos meios urbanos e entre os mais escolarizados, enquanto o MPLA era mais votado no meio rural e entre os menos escolarizados. Este quadro que configura uma viragem significativa na nossa geografia eleitoral veio a ser comprovado com os resultados eleitorais, sobretudo os resultados de Luanda, onde, em qualquer contagem, o MPLA sofreu uma derrota copiosa da qual terá que saber extrair as lições e ilações necessárias. Pelos pronunciamentos que ouvimos de altos dirigentes do MPLA, ainda escudados numa obstinada arrogância, não aprenderam nada com esta aula magistral. Esta eleição revelou também uma deslocação para Norte do voto da UNITA, enquanto o centro tradicional se manteve estável. Este é um sinal que os dirigentes da UNITA devem ler com muita atenção.

A alteração da geografia eleitoral radica em problemas concretos decorrentes das políticas equivocadas do MPLA, como o desemprego galopante, sobretudo em jovens, e outros problemas sociais básicos como a fome, o acesso à educação, precariedade na saúde, enfim, uma série de problemas reais ligados à crise económica, agravados pela pandemia da Covid-19, para os quais o Governo do MPLA nunca encontrou as soluções adequadas, preferindo, em muitos casos, ignorar simplesmente a existência do problema, relativizar a fome e, perante reivindicações legítimas, preferir a repressão policial sobre os jovens. A par disso, contribuiu para esta nova geografia eleitoral uma crescente tomada de consciência cidadã, baseada num acesso ilimitado à informação por meio das vibrantes tecnologias digitais, mormente as redes sociais que escapam totalmente ao controle das autoridades. É essencialmente por isso que o uso abusivo da comunicação social tutelada para veicular propaganda do Partido-Estado, quase 24/24 horas, não beliscou sequer a consciência dos jovens, havendo mesmo quem diga que teve, antes, um efeito contrário. O efeito bola de neve não se fez rogado e assim cresceu nos meios urbanos a onda gigante pela alternância.

O Governo do MPLA teve desde sempre muita dificuldade de lidar com esta juventude contestatária, cada vez mais numerosa e ruidosa que encontra nas redes sociais o seu megafone, mas que tem força bastante para contagiar o espaço físico real, como bem demonstra a nova geografia eleitoral. O Governo que emergir destas eleições deverá alterar radicalmente a sua relação com este segmento social, optando por uma atitude mais dialogante, em diálogo sério, honesto e inclusivo, e proporcionando oportunidades de realização a todos. Se não for esta a opção restará como alternativa o confronto ostensivo e permanente do qual sairá penalizado o Governo. É imperioso, pois, dialogar mais com a juventude e a sociedade no seu todo, esmerar-se no saber ouvir, captar as suas aspirações, os seus anseios e sonhos e transformá-los em políticas públicas coerentes capazes de alterar positivamente o tétrico panorama social presente.

Enfim, a história democrática de Angola acaba de incluir mais um capítulo no seu texto, o que mostra que, apesar de titubeante, por força dos inúmeros obstáculos colocados pelo Partido-Estado na sua obstinada estratégia de manutenção do poder, ela segue o seu curso inexorável. Como referiu Adalberto Costa Júnior em declarações recentes que eu subescrevo por inteiro "A aspiração democrática ganhou definitivamente o coração dos angolanos" e, quando isso acontece, não há vento nem tempestade tropical capaz de travar a marcha.

Estas eleições marcam provavelmente o princípio do fim das fraudes eleitorais em Angola, puseram em evidência a bipolarização da política angolana, que, do meu ponto de vista, só será salutar se propiciar a alternância, e alterou significativamente a geografia eleitoral de Angola. É muito provável que passemos a ter uma geografia eleitoral líquida, para utilizar um conceito de Zygmunt Bauman, caracterizada por uma volatilidade ao sabor das demandas sociais circunstanciais, mas isto só vai tornar mais interessante o jogo democrático e o empenho dos actores políticos que deverão esmerar-se na arte de saber ouvir e ler atentamente os sinais que emanam da sociedade. O importante é que o jogo seja sempre limpo, respeitando os referentes do Estado Democrático e de Direito, que é afinal o nosso ideal constitucional.