Nessa altura, a minoria (onde me incluo) que não se entusiasmou com a sua chegada à Presidência olhava para a sua trajectória política, sobretudo para o seu passado de afoito apoiante do regime que "estamos com ele".
O cepticismo dessa minoria estava ancorado na falta de qualquer declaração sua de denúncia, afastamento ou simples dúvida sobre as práticas políticas então vigentes.
Confesso que, para além de uma entrevista sua dada ao então director do semanário "Expresso", cheia de chavões, frases feitas e elogios a José Eduardo dos Santos, não tinha lido mais nada sobre si que pudesse servir de base para aferir do seu pensamento político.
Muitos dos meus amigos se zangaram comigo, pasme-se, alguns até cortaram relações comigo, viraram "minimigos", dizendo que, se até a oposição o apoiava, quem era eu para pôr em causa as suas credenciais de democrata.
As hipóteses que se colocavam sobre o seu silêncio em relação a algumas atrocidades variavam entre tacticismo e chantagem de que pudesse ser vítima, mas, mesmo assim, era difícil compreender como é que alguém que não se indignou com assassinatos como os de Kamulingue e Cassule, a prisão dos 15+2 revus, o assassinato de zungueiras na via pública, pudesse ser democrata.
Todavia, nesta altura, mulheres do seu partido, corajosamente, disseram alto e em bom som ser inadmissível que "ainda ocorram no País detenções, por se pensar diferente" e que o Presidente José Eduardo dos Santos se estava a comportar como um "Bokassazinho". Denunciaram também a atípica Constituição angolana que "limita a democracia".
Depois, vimo-lo viajar em luxuosos aviões com renda de milhões diários, tirar da cartola projectos de construção de bairros para os ministros trabalharem, clínicas para dentes executivos, enquanto a miséria grassava no País e se esquecia que "O Mais Importante é Resolver os Problemas do Povo".
Era altura da bicefalia e porque notícia é o que é adverso, os cépticos questionavam porquê que a TPA e a RNA não realizavam debates sobre a crise intramuros no MPLA e lembravam que imprensa livre não é a que tem liberdade para escrutinar ex-poderosos, mas, sim, o poder hoje.
Pouco depois, o senhor exonerou Isabel dos Santos da liderança da SONANGOL, retirou da gestão do canal 2 da TPA outros filhos de José Eduardo dos Santos. Aí, muitos o baptizaram de "Exonerador implacável".
Com isso, vimos jornalistas e comentadores fazerem muitos esforços para convencer o mundo de que o paradigma tinha mudado. Nesse momento, argumentei que o paradigma era/é o mesmo e que apenas tinha mudado o inquilino da Casa e, consequentemente, o estilo.
No entanto, preocupada e esperando por sinais de mudança de paradigma, aquando dos 50 dias do seu mandato, sugeri, nas redes sociais, uma entrevista sua na TPA com a presença de público, especialistas e alguém da Diáspora com direito a fazer perguntas.
Caiu-me tudo em cima, com argumentos do género era "muito cedo", era preciso "esperar pelos 100 dias", quando o que eu pretendia era que o Sr. Presidente se expusesse e tornasse público o seu pensamento e posicionamento político-ideológico.
Depois, o Sr. Presidente veio a Portugal e aqui apelida de "marimbondos" seus Compagnons de route, destrata o seu antecessor, aquele que "lhe ofereceu o Poder", segundo o seu colega da Guiné-Bissau.
E faz a Diáspora esperar cerca de quatro horas para o ouvir, com a justificação, dada pelo seu mestre de cerimónia na sua presença, de que o Presidente tinha tido "encontros não agendados" com "personalidades importantes do mundo dos negócios e da Academia" de Portugal.
Algumas dessas "personalidades importantes" fizeram, pouco tempo depois, comentários nada abonatórios a seu respeito, dizendo de si aquilo que "Maomé não diz do toucinho", porque, como diz o povo, "quem não se dá ao respeito também não é respeitado".
Neste caso, dar-se ao respeito é também ou principalmente respeitar compromissos, priorizar a Diáspora como fazem os Presidentes de Cabo Verde, Brasil, Moçambique e Portugal, para citar só alguns.
Antes disso, o Sr. Presidente decide, por sua conta e risco, ameaçar Portugal com corte de relações, porque o poder judicial luso queria julgar um seu companheiro de partido e aliado que corrompeu (ficou provado em tribunal) um magistrado português.
Entretanto, a vida dos angolanos foi-se deteriorando: crianças brigando por lixo em contentores para se alimentarem, milhões fora do sistema de ensino, assistência médica deficitária, Polícia cada vez mais repressiva, criminalidade a crescer de forma galopante, tensão política visível e perigosa, causando instabilidade política, Paz podre, enquanto do Palácio saem brigadas digitais e outras encarregadas de disseminar o terror.
Liberte-se, Sr. Presidente!
De extremistas que o rodeiam, dos que, vendo o País a arder, continuam a aconselhá-lo a não dialogar com angolanos com projectos políticos diferentes dos seus. Dialogue por Angola, sem mise-en-scène.
Liberte-se dos intolerantes políticos que já rodeavam o seu antecessor. Os tais que queriam pelo menos 10 réplicas de José Eduardo dos Santos e outras tantas de Isabel, a do "Luanda Leaks".
Oiça vozes livres, usando "o PIN e o PUK" da Paz que tem em mãos, parafraseando Dom Manuel Imbamba. Vozes de adyakimi, de zungueiras, daqueles que não correm atrás de lugares nem de favores políticos. Oiça vozes discordantes, muitas das quais muito corajosas, e não se deixe aprisionar por cataratas no cérebro.
E liberte os capturados instrumentos de controlo do exercício do Poder, nomeadamente a Comunicação Social, a Justiça e o Parlamento.
Liberte-se também da narrativa negacionista que relativiza dramas sociais que atingem o País inteiro, porque os famintos não têm cartão, nem sindicatos.
Siga exemplos como o do seu último visitante, o Chefe de Estado de Cabo Verde, para quem o Presidente deve ter "serenidade e elevação de espírito para ouvir as críticas, e, com humildade, aprender com os erros, sem se deixar levar pelos extremismos e populismos".
Liberte a linguagem política, afastando-se das inverdades, assumindo os erros e os acertos, porque a propaganda é efémera e o legado perpétuo.
Liberte-se ainda de antigos bajus, aqueles que já o eram antes da sua chegada ao Palácio, dos neobajus que, ostracizados por dos Santos, surgem hoje na pole position da bajulação à espera de figurarem em listas de deputados, de um lugar no Governo ou outras instituições do Estado, em busca de benesses materiais e patrimoniais que a bajulação proporciona.
Ademais, liberte a Polícia e as Forças Armadas, tornando-as verdadeiramente republicanas para cumprirem cabalmente com as suas funções de garante da segurança pública, da lei e da ordem e da defesa da soberania nacional.
Liberte-se de braços esquerdos, direitos ou ambidestros, cuja reputação é chacota nos corredores do Poder e media mundiais, pelo seu envolvimento em falcatruas e actos de corrupção.
Liberte-se, com urgência, do medo de partilhar o Poder, fazendo cumprir a Constituição com a realização de eleições autárquicas e descentralização do Poder.
Liberte a imagem do País criada por oportunistas que nas embaixadas fazem da perseguição a personalidades da Diáspora a sua principal acção (eu própria tenho sido uma das visadas). Imagine, Presidente, até ensaiaram pedir a ilegalização de uma ONG que lidero.
Faça da transparência regra e da opacidade na gestão da coisa pública o inimigo número um, dando passos para a despartidarização da função pública.
Mas Presidente, não se esqueça de pôr ordem no seu partido. Trabalhe pelo País e avise aos seus camaradas que devem colocar a Pátria à frente do partido, a Paz à frente de suas efémeras glórias.
Como historiador, alerte-os para a falta de cultura e consciência histórica, contando-lhes que, fruto do nosso processo e idiossincrasia políticos, muitos patriotas e nacionalistas angolanos tiveram passaportes de outras nacionalidades, como forma de desenvolverem as suas acções políticas.
Diga-lhes, por exemplo, que Agostinho Neto teve passaportes marroquino, congolês, etc., mas isso não o impediu de proclamar o feito maior da História recente de Angola: a Independência Nacional, e tornar-se no primeiro Presidente do País.
Salve o País, conjugando o mais belo verbo do humanismo - dialogar - mesmo que isso signifique desagradar a alguns membros do seu partido.
Presidente, liberte-se, porque não há Poder mais valioso que a Liberdade.