Decidiu-se a ficar longe dos irmãos moçambicanos, namibianos, sul-africanos e outros da sua região. Escolheu ser ilha e viver "orgulhosamente só", fazendo lembrar a longa noite colonial.
Moçambique mostrou, nas últimas semanas, que a distância entre os dois países irmãos, filhos da mesma Mátria, com processos libertários idênticos, vai aumentando à medida que Angola intensifica a sua obsessão pelo silenciamento dos que denunciam a podridão de um País onde o faz-de-conta é regra e a realidade ultrapassa a ficção.
A academia, intelectuais, políticos, académicos, diplomatas, militares, media, estudantes de diferentes matizes de Moçambique abriram-se para ouvir, acarinhar e projectar o livro "Silenciocracia, Jornabófias e outras Mazelas", porque a vida e o pensamento são sempre conjugados no plural contra os monolitismos.
Cada vez mais longe do irmão do Índico, Angola, que para alguns é gémeo de Moçambique (gémeo falso, talvez!), é visivelmente mais castrador das liberdades e está muito mais longe da construção de uma sociedade assente na igualdade de oportunidades e no respeito pela dignidade humana.
Em Moçambique, por exemplo, no partido no Poder, a FRELIMO, irmão do MPLA, alas e tendências fazem oposição interna. Os guebuzistas e os samoristas não foram todos convertidos em nyusistas, estão activos e bem audíveis, muitas vezes de forma estrondosa.
Os críticos, os intelectuais e os académicos dizem de sua justiça, mesmo que o Poder desgoste e fazem da luta pelo pensamento livre uma constante, por isso Moçambique não tem presos nem perseguidos políticos ou de consciência.
O lançamento do "Silenciocracia, Jornabófias e outras Mazelas" na Universidade Pedagógica de Maputo (pública), a 24 de Fevereiro, foi, neste contexto, um momento de encontros e reencontros com o saber e com essa forma de educar sem medo, sem censura política, velada ou sub-reptícia, de que a academia moçambicana faz gala.
Contrariamente a Angola, neste quesito, as pressões internas e externas, bem como as tenebrosas "ordens superiores" têm mais dificuldades de sucesso. Por isso, no ranking de avaliação das universidades africanas, a moçambicana Eduardo Mondlane aparece em 76.º lugar, enquanto as angolanas estão longe das 350 melhores do continente.
Nesta senda, fazendo pedagogia democrática, Jorge Ferrão, reitor da UPM, sublinhou a importância de lançar no seu espaço universitário uma obra que o único unanimismo que reúne é a necessidade de se discutirem os temas que apresenta. E advogou o direito dos intelectuais à palavra, mesmo que incómoda.
No mesmo espaço, semanas antes, José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde, numa notável conferência, alinhou pelo mesmo diapasão, afirmando a importância de se ouvirem todas as vozes e de os políticos do Poder estarem sempre preparados para ser oposição.
No lançamento do livro, Sara Laisse, docente universitária e moderadora do aceso debate que promoveu, viu na obra um instrumento de pensamento pan-africano, tal como Ricardo Santos, outro intelectual moçambicano, descreveu a autora como uma pan-africanista moderna.
Quatro dias depois, o lançamento do livro na Universidade do Save (UniSave), em Chongoene, província de Gaza, lugar do umbigo de Samora Machel, pai da Independência de Moçambique, que via na "Educação uma base para o povo tomar o Poder", serviu para lembrar essa tomada do poder pela liberdade de género, mãe da igualdade de género contra a simples quantidade de género.
Em Moçambique, com 2,4 milhões de crianças fora do sistema de ensino e 40 por cento de analfabetos, segundo dados oficiais, lembramos que a Educação é arma libertadora e preventiva, e forma de garantir que "nenhum tirano nos irá escravizar", como diz o Hino Nacional da "Pátria Amada".
Na UniSave, primeira universidade instalada num distrito, fora de uma capital provincial, sinal de combate às assimetrias regionais, docentes e estudantes escreveram e musicaram poemas sobre o livro, a autora e o seu chão umbilical, bem como sobre a igualdade de género.
Manuel Morais, o reitor, líder de uma equipa muito hospitaleira, deu o mote, escancarando as portas da sua instituição à autora e a tudo que acrescente valor ao pensamento e ao conhecimento.
Em Maputo e em Gaza, Tomás Vieira Mário, uma das referências do jornalismo moçambicano, meu mano identitário com qual partilho percurso formativo e profissional e muitos pontos de vista, sublinhou, sempre livremente e sem qualquer condicionamento, as semelhanças das mazelas de Angola e Moçambique.
Das dezenas de viagens que fiz para Moçambique, desde a primeira, em 1982, para estudar Jornalismo, essa última teve uma dimensão especial. Pareceu-me uma expedição de promoção de uma Angola plural que, na expressão do director deste jornal, Armindo Laureano, "acontece" e faz acontecer "fora de Angola", longe da cartilha do monolitismo de ideias.
Viagens que são uma espécie de peregrinação, como idas a Meca, Jerusalém ou Fátima, no cumprimento de promessas ou em busca de conforto espiritual. Moçambique é cada vez mais o meu lugar de busca do sagrado cultural.
É o lugar onde o abraço tem sabor. Sabe a amor, paixão, amizade, fraternidade, reconhecimento, saudade, solidariedade e identidade pan-africanista. É também o lugar onde a minha condição de amante fiel e leal da Liberdade se acentua.
Aqui nunca sou enteada, nem afilhada. Sou sempre filha. E são-no também todos os filhos gerados do generoso ventre africano. É assim que, de país de afectos, Moçambique é hoje o meu lugar de felicidade.
Enquanto vivíamos a ressaca do êxito do primeiro lançamento do livro com capa da artista plástica Dilia Fraguito Samarth, prefácio de Jean-Michel Mabeko-Tali, posfácio e texto final de Anil Samarth e Francisca Van Dúnem, respectivamente, em Maputo, o escândalo Man Gena rebentava, mostrando uma Angola cada vez mais afastada dos lugares de decência humana.
As informações sobre o envio de "secretas" para perseguir Man Gena, ex- narcotraficante, hoje denunciante, que tem feito graves revelações sobre o narcotráfico, seus barões e caminhos que Angola está a trilhar, em passo acelerado, rumo ao narcoestado, são tão graves quanto assustadoras.
Habituado à impunidade, o País deixou cair a máscara e foi visto na terra de Samora Machel como um Estado disposto a estender os seus tentáculos repressivos com laivos criminosos a qualquer sítio, para defesa do regime silenciocrático que já dura tempo demais.
As denúncias falavam das tentativas de rapto de Man Gena que fugiu de Angola onde tem a cabeça a prémio, por causa de acusações que faz, envolvendo membros da secreta e políticos angolanos no tráfico de drogas.
Man Gena, a mulher, grávida de seis meses, e dois filhos pequenos entraram em Moçambique, sem documentos, depois de terem atravessado os territórios da vizinha Namíbia e da África do Sul, fugindo dos seus algozes.
Perante a ameaça de expulsão desse denunciante que, antes de tudo, merecia a protecção das autoridades angolanas que deveriam ser as primeiras interessadas em desvendar e desmantelar as redes criminosas de traficantes de droga no País, Man Gena encontrou amparo em Moçambique.
Jornalistas, activistas, Ordem dos Advogados, políticos e sociedade civil moçambicanos mobilizaram-se para denunciar a tentativa de eliminar uma testemunha crucial do criminoso tráfico de drogas e pressionaram o Governo de Maputo a garantir que não expulsaria o angolano e a sua família.
Os media moçambicanos internacionalizaram o "caso Man Gena", dificultando, dessa forma, os planos dos que pretendem silenciar o denunciante.
E das autoridades angolanas? Nem uma palavra de compromisso e de apoio ao papel de denunciante que Man Gena está disposto a fazer, nem garantias de investigação séria do assunto.
Com clara noção do submundo das drogas e do modus operandi do aparelho repressivo de Angola, Man Gena expôs um lado que, apesar de conhecido de certos meios, era desconhecido pelo grande público moçambicano, mostrando um País onde as desigualdades e a captura do Estado produzem impunidades e imunidades discriminatórias e criminosas.
Por isso, a minha viagem serviu também para dizer que o País é mais do que escândalos Man Gena, Joel Leonardo e outros que são chacota cá, em Moçambique, onde se ouvem expressões como "a justiça é o novo eldorado da corrupção" em Angola.