Vamos recuar no tempo e falar da viagem que o jovem Paulo de Almeida faz aos EUA, em 1975, como escolta de Saydi Mingas...

Realmente é uma viagem memorável e que marcou muito a minha vida. Era jovem. Foi a primeira viagem que fiz ao exterior e parece até um pouco irónico, mas tratou-se da minha primeira viagem de avião.

Quantos anos tinha na altura?

Tinha 22 anos. Eu estava enquadrado numa delegação como escolta do camarada Saydi Mingas, portanto era uma delegação do MPLA.

Tudo isso ainda antes da Independência Nacional?

Antes da Independência. Mas que íamos para as Nações Unidas já no âmbito do Governo de Transição. Os três movimentos de libertação haviam de estar nas Nações Unidas para dar o ponto de situação de Angola, uma vez que estávamos em vésperas da Independência. Então, fomos aos EUA numa delegação chefiada pelo camarada Saydi Mingas e da qual faziam parte os camaradas Paulo Jorge, Luís de Almeida, Noé Saúde e já lá nos EUA estava o camarada Elísio de Figueiredo. Eu era escola e chegámos aos EUA, e os camaradas viram que eu tinha algumas valências, quer em termos de conhecimento, quer em termos da própria língua inglesa. Então, nos ambientes diplomáticos e dos contactos dos corredores, eu também fazia parte, integrava e, às vezes, também dava algumas opiniões (risos).

Era um escolta bastante ousado (risos)?

Sim. O curioso é que já na Assembleia (da ONU), naqueles momentos em que a delegação tinha de fazer corredores para explicar a situação de Angola e o posicionamento do MPLA quanto à situação que na altura era candente, fui indicado para ficar a representar a delegação no plenário da Assembleia-Geral da ONU. Claro que aquilo para mim foi uma situação um pouco difícil, tratava-se da primeira vez que estava perante um plenário com tanta gente e eu só estava à espera que me fizessem algumas perguntas ou me dirigissem algumas palavras, e eu a pensar no que iria dizer. Mas, dentro da minha calma, da minha serenidade, estive quase toda a manhã a representar o MPLA no plenário da ONU.

Foi como escolta e acabou tendo outras funções mais administrativas, e até de representação?

Daí, depois fomos para Washington e lá tivemos contactos, tivemos com o senador Edward Kennedy, numa espécie de mesa-redonda, onde falámos. Eu fiz parte desse encontro. Depois tivemos um encontro com estudantes. Creio que no centro estratégico dos EUA....

Qual era a ideia, qual era a visão que os americanos tinham de Angola e da Luta de Libertação Nacional dos movimentos de libertação, mais concretamente a luta do MPLA?

Lógico que a ideia que eles tinham era de que o MPLA era um movimento comunista, aliado à antiga União Soviética, e logo não tínhamos muita margem em termos de credibilidade. A UNITA e, sobretudo, a FNLA, na altura, estavam com maior peso e, portanto, nós íamos dar a nossa visão sobre aquilo que pretendíamos de Angola independente e numa possível Independência dentro de uma base de unidade e de reconciliação. Na altura, já se verificavam alguns confrontos entre os movimentos aqui no nosso País. A FNLA e a UNITA já não estavam em Luanda, e, então, essa discordância existente (entre os movimentos) fez que a comunidade internacional estivesse céptica em relação ao futuro de Angola. Por conseguinte, o MPLA foi lá explicar-se convenientemente sobre o estado de situação e fiz-me membro da delegação. Fui eu quem fez o relatório desta viagem quando voltámos para o País e dirigido ao Presidente Neto. Lembro-me na casa do camarada Saydi Mingas, em que eu e mais a directora-adjunta, Ana Isabel, estávamos a fazer o relatório. Eu, como estava ainda fresco da Escola Comercial, bati o relatório a maquina e foi enviado ao Presidente Neto. Portanto, era um escolta de luxo (risos).

Voltando à questão dos EUA, já Elísio de Figueiredo, Deolinda Rodrigues e dois dos seus irmãos tinham vivido e estudado lá no âmbito da ligação à Igreja Metodista, de onde o comandante Paulo de Almeida tem origens. Já havia ligação entre a igreja cá em Angola e os americanos?

Sim. Esta viagem também permitiu que me encontrasse com o meu irmão, que já estava há quase 20 anos nos EUA. O meu irmão e a minha irmã, falo do Jerónimo e da Loydanne, foram neste grupo de jovens da Igreja Metodista que obtiveram bolsas para estudar nos EUA. Eles saíram de Angola no início da década de 60 e, portanto, foi uma alegria encontrá-los. De facto, já havia um ambiente conhecedor da realidade americana, e Elísio de Figueiredo era, na altura, o representante do MPLA nos EUA.

(...)

Com essas situações todas até ao processo da sua saída que foi um caso com algumas zonas cinzentas, muito associadas aos acontecimentos do dia 10 de Janeiro no Benfica.

Podem dizer o que quiserem dizer, não saí por falta de competência, por indisciplina, por falta de empenho, não. Saí porque alguém não quis que eu continuasse a ficar à frente da Polícia.

E sabe quem é este alguém?

Eu disse que tem nome e tem rosto. As pessoas sabem. E, por isso, eu fico sentido, porque não fui recrutado para entrar neste processo político e revolucionário do País, entrei voluntariamente, há 47 anos, e dei o meu sacrifício, andei por todo este País, muitas vezes com o sentimento de não mais voltar para casa. A nós dói-nos quando terminamos efectivamente da forma como terminamos. Eu não estou aqui a reivindicar o cessar de funções ou a reforma. Não, não estou. Todos nós que começamos temos que terminar, todos nós que temos um início, temos um fim, mas esse fim, nos nossos casos, deve ser um fim glorioso, um fim estimulado.

Sentiu que foi humilhado, que foi destratado?

Fui destratado! Fui destratado! E por isso é que até hoje o som do telefonema que me foi feito e as palavras que ouvi estão reservadas no meu ser, que foram ditas da seguinte maneira: "Estou a comunicar-lhe que Sua Excelência Presidente da República mandou dizer que a partir de hoje você cessou as suas funções. Ponto final." Eu estava fardado, de farda de gala, numa reunião de Estado.

Fora do País?

Fora do País. E fiquei sem saber se devia entrar mais para a reunião ou sair, não sabia o que fazer naquele momento.

Ficou desorientado?

Fiquei. Não sabia se devia falar com o colega ou não sobre o que tinha acabado de ouvir. E o que me dói é que havia muito tempo para me transmitirem esta informação. Ou não me deixavam ir para o Congo Brazzaville, ou quando voltasse podiam ter-me dito que havia esta situação assim, assim.

É engraçado, o comandante viaja para o Congo Brazzaville numa sexta-feira, mas terá sido nesta mesma sexta-feira que ainda esteve na Televisão Pública de Angola (TPA) com o Ministro Laborinho e o então responsável do SIC, que é hoje o comandante-geral da Polícia Nacional (Arnaldo Carlos). Estiveram os três, naquela sexta-feira, na TPA...

E é verdade isso. Eu voltei, mas não entrei mais no meu gabinete.

Mas, na altura que foi à TPA, já havia sido entregue a sua proposta de exoneração?

O que eu ouvi nos segredos é que a proposta foi elaborada um dia antes.

Na quinta-feira?

Exactamente. Na quinta-feira.

Quer dizer que o ministro Laborinho e o seu sucessor já sabiam de tudo? Terão feito aí uma espécie de encenação consigo?

Já sabiam. Eu volto (do Congo Brazzaville), mas não entro no meu gabinete. Eu volto, cheguei às 14 horas, à tarde tomou posse o meu sucessor e não entrei mais.

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