Ao fim de três desgastantes décadas de poder, que assumiu após a derrocada do regime do apartheid, em 1994, o ANC reconhece, pela voz do seu líder e Presidente da "Nação Arco-Íris", que é urgente dar mais comida, água, electricidade, saúde, educação... à população.
Com a necessidade de tomar medidas drásticas e com o país afogado em pobreza, desemprego, corrupção e uma inflação sem precedentes, depois de perder a maioria absoluta nas eleições de 29 de Maio, Ramaphosa viu-se obrigado a aceitar Governar com a Aliança Democrática (AD), visto por muitos como os "herdeiros" do antigo regime. (ver links em baixo nesta página)
Num discurso de tomada de posse, na quarta-feira, 19, onde estiveram vários Chefes de Estado e de Governo africanos, incluindo João Lourenço, o Presidente sul-africano, depois da "derrota" nas urnas, onde conseguiu 41%, que compara com os 54% de 2019, viu-se forçado a admitir o fracasso da governação do ANC.
Disse claramente que a África do Sul entra agora "numa nova era", referindo-se à partilha do poder com a AD e com o Inkhata, dois partidos de direita e extrema direita - o ANC é ideológica e historicamente de esquerda bem vincada -, mas não apenas isso...
Cyril Ramaphosa assumiu de forma clara e inequívoca que o Governo que vai agora nomear, e que deve consubstanciar a coligação com a AD (21% nas eleições de 29 de Maio) e com o Inkhata (3,8%), deve ter como prioridade dar mais comida, água, electricidade, saúde, educação, habitação...
Isto, porque foi a incapacidade de proporcionar estes bens básicos ao povo que deu consecutivas maiorias absolutas ao ANC durante 30 anos que está por detrás do castigo recebido agora nas urnas.
"Os eleitores da África do Sul não deram a maioria a nenhum partido para governar, optaram antes por indicar que querem que trabalhemos juntos de forma a resolver os problemas e realizar as suas aspirações", disse.
E acrescentou, naquela que é a frase mais relevante deste seu discurso inaugural: "Os eleitores expressaram de forma inequívoca a sua desaprovação e desapontamento pela performance dos governos do ANC, em algumas áreas, onde falhamos nos compromissos que assumimos".
Todavia, além destes desafios de governação, Ramaphosa terá ainda pela frente o mais difícil de todos, que é erguer um Executivo que, ao juntar o ANC, a AD e o Inkhata, não apenas gere soluções como garanta estabilidade governativa para os próximos cinco anos.
Isto, porque está ciente de que será atacado dia após dia, sem descanso, pelos dois grandes partidos à sua esquerda, os radicais de Julius Malema, os Combatentes pela Liberdade Económica (EFF, na sigla em inglês), que obteve 9,5%, e o MK (14,5%), de Jacob Zuma, antigo líder do ANC e Presidente da África do Sul, que recusaram, sendo o inverso igualmente factual, entrar numa solução com a AD e o Inkhata.
E uma das questões com estatuto de elefante na sala é a memória colectiva dos anos de regime racista do apartheid (1948-1994) que persiste e que, para muitos, apesar dos esforços para se afastar desse legado, ainda tem uma ligação com a AD de John Steenhuisen, ou mesmo do Inkhata, que era um partido do sistema pré-democracia com poder no Kwazulo-Natal.
Além dos ataques directos às medidas políticas que vão ser aplicadas pelo Executivo da "nova era" - na África do Sul o Presidente não tem prazo para proceder à sua nomeação -, Ramaphosa terá ainda de diluir os ataques à sua opção de coligação.
Ciente de que este é um cenário que pode gerar instabilidade, Cyril Ramaphosa apelou, de forma veemente, aos futuros governantes e aos partidos da coligação para "rejeitarem e combaterem todas as tentativas de divisão e distracção do essencial".
E sabe que os adversários "vão tentar gerar dúvidas" e colocar "uns contra os outros", sugerindo como solução que o próximo Governo se mantenha unido nos objectivos, porque só assim "os que quiserem inflamar tensões não terão sucesso".
Mas há um dado objectivo: o processo negocial que se segue para formar Governo será longo, tenso e complexo, especialmente na atribuição das pastas mais relevantes, como os Negócios Estrangeiros, a Economia e Finanças, o Interior e a Saúde.