Embora subsistam dúvidas sobre a natureza dos ataques ao Kremlim, onde as defesas ao mais emblemático edifício do poder da Federação Russa destruíram in extremis dois drones já no interior do espaço restrito da "casa" de Putin, se foram mesmo os ucranianos ou uma operação de falsa bandeira russa, a verdade é que das dezenas de paradas alusivas ao 9 de Maio apenas a de Moscovo, a de maior valor simbólico, não foi cancelada.
Isto, porque, efectivamente, a intelligentsia russa sabe que a repetição de uma situação semelhante à que sucedeu no dia 3 de Maio, na semana passada, quando dois drones entraram no espaço restrito do Kremlin, deixando em pânico a segurança mais que reforçada a este "templo" do poderio russo, poderia ser um golpe devastador não só no simbolismo atribuído por Moscovo a este dia, mas também lançar dúvidas letais sobre a capacidade russa de garantir a segurança do seu próprio território.
E. mesmo assim, a Parada de 9 de Maio desta terça-feira está envolta numa espessa camada de dúvida sobre eventuais tentativas ucranianas, ou de facções nacionais anti-Putin, para fazer descarrilar o momento normalmente aproveitado para demonstrar o poderio militar russo e o nacionalismo do povo da "mãe" Rússia, sendo que este ano é ainda mais importante devido à guerra na Ucrânia, onde, claramente, os russos estão a enfrentar dificuldades inesperadas, apesar de afirmarem amiúde que estão a lutar contra todo o poderio em equipamento militar ocidental, da NATO/EUA, operado no formato "proxy" por tropas ucranianas.
Presidente ucraniano não vai em cantigas históricas
Volodymyr Zelensky, sobre o 9 de Maio, não se deixou embalar pelo feito soviético de 1945, quando o Exército Vermelho, em 1945, acabou em definitivo com a resistência de Hitler em Berlim, e afirmou que os invasores serão "derrotados" como foram derrotados os nazis.
"O mal que os nazis fizeram, levou-os à derrota, agora, o mal que a Rússia está a fazer, levará os russos a serem derrotados de igual modo", apontou o Presidente ucraniano no seu discurso diário de galvanização nacionalista.
Volodymyr Zelensky deixou esta garantia de vitória num vídeo que foi gravado tendo por detrás o memorial da II Guerra MUndial próximo do rio Dnieper, na capital ucraniana, Kiev, onde recordou que o povo ucraniano teve um papel decisivo na derrota de Hitler, sendo que, na altura, a Ucrânia integrava a agora ex-URSS.
Disse ainda que não vai admitir que ninguém se aproprie da vitória sobre os nazis que considera ter sido uma vitória que saiu do esforço conjunto de várias nações que se ergueram numa frente anti-Hitler.
Moscovo castiga Ucrânia com nova chuva de misseis
Para já, enquanto não chega a alvorada do 9 de Maio, as forças russas parecem ter entrado noutro capítulo da guerra após o ataque ao Kremlin pelos drones "ucranianos", aproveitando, ou sendo apenas coincidência, esse momento, para lançar uma chuva vingativa gigante de misseis, drones e ataques pela aviação de guerra a cidades e posições ucranianas, de Kiev a Odessa, de Kharkiv a Kramatorsk.
Alguns analistas notam que esta chuva explosiva sobre a Ucrânia é Moscovo a dizer ao Presidente Volodymyr Zelensky que se voltar a tentar uma ousadia semelhante na parada desta terça-feira à dos ataques ao Kremlin, a resposta será demolidora.
Isto, depois de as forças russas que combatem pela conquista total de Bakhmut, na região de Donetsk, no Donbass, a cidade onde se desenrola a mais violenta das batalhas desta guerra, e a mais devastadora desde a II Guerra Mundial em solo europeu, terem despejado toneladas de bombas de fósforo branco nos últimos quarteirões que restam nas mãos dos ucranianos, incendiando-os, literalmente.
As munições de fósforo branco são explosivos químicos que, embora não sendo proibidos pelas leis internacionais da guerra, a Convenção de Genebra, não podem ser usados em áreas com civis - tudo indica que já não estejam civis na área -, porque, como os vídeos que surgiram pouco depois nas redes sociais o demonstram bem, dificilmente qualquer tipo de vida que não esteja protegida fundo no solo, sobreviverá.
E o efeito foi que o ministério da Defesa russo veio já este Domingo afirmar que a cidade de Bahkmut está praticamente tomada pelas suas forças, restando apenas umas ruas já nos limites da cidade controladas por Kiev.
Isto acontece, todavia, num momento de grande dúvida entre as hostes russas, desde logo com o chefe dos paramilitares do Grupo Wagner, Evgeny Prigozhin, a ameaçar deixar a linha da frente por falhas na logística russa que leva a falta de equipamento, ameaçando mesmo abandonar tudo já a 10 de Maio.
Isto, apesar de ser provável que as palavras de Prigozhin sejam parte de uma encenação elaborada para manter o fluxo de forças e equipamento ucraniano a caminho de Bakhmut, como têm defendido alguns analistas militares, como é o caso do Coronel Mendes Dias, na CNN Portugal.
O objectivo deste "teatro" é difícil de confirmar mas as teses mais aceitáveis são que os russos têm nesta cidade uma plataforma ideal de destruição de material e homens ucranianos, mantendo, inclusive, uma estrada importante aberta quando seria facilmente aniquilável pela artilharia, ou um engodo para distrair as atenções enquanto ao longo dos mais de 1.200 kms de linha da frente restantes se desenvolvem grandes esforços preparatórios para a esperada contra-ofensiva de Kiev.
E para quando a paz?
Aparentemente, este é um momento decisivo nesta guerra, porque, ao cansaço claro dos países da Europa ocidental e nos EUA, com os efeitos devastadores desta guerra nas suas economias, com uma inflação que parece não ser controlável, o crescente protesto popular, embora ainda pouco expressivo nas vozes dos lideres mais relevantes, à excepção do Presidente francês, Emmanuel Macron, começam a surgir também nos EUA sinais de procura de novos caminhos.
Curiosamente, como sempre sucede, foi Henry KIssingir, o velho leão da diplomacia norte-americana, com 99 anos, a mostrar o caminho, ainda em 2022 (ver aqui e aqui), ao dizer que não havia alternativa às negociações para esta guerra, tendo agora voltado, numa entrevista à CBS Newes, este Domingo, a dizer que se está a chegar a um ponto de viragem em direcção à mesa das negociações.
Diz o velho estadista, que serviu diferentes Administrações, entre Richard Nixon e Gerald Ford, na década de 1970, mantendo-se sempre como uma referência para todas as que lhes sucederam, que a entrada da China no esforço diplomático para encontrar uma saída para o conflito vai conduzir inevitavelmente a um ponto de viragem.
Kissinger estima que até ao final deste ano de 2023 esse "efeito China" nas conversações de paz será visível e efectivo na entrada para um novo capítulo: "Agora que a China entrou neste jogo negocial, estou certo que se chegará a um ponto decisivo até ao final de 2023", acrescentando que "se estará então a falar seriamente de um processo de negociações e negociações efectivas sem demora".
Estas palavras de Henry Kissinger emergem de um momento particularmente sugestivo porque também o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, já fez saber que se começa a ver com bons olhos em Washington um recomeço com Pequim depois de há dois meses as coisas terem ficado feias quando, por causa do estranho episódio do alegado balão-espião chinês, o próprio ter cancelado uma deslocação oficial à China, criando um mal-estar evidente entre as duas maiores potências económicas do mundo.
A entrada da China nestes "jeux" diplomáticos é considerado por muitos como um momento fulcral, porque outos "jogadores" terão mais dificuldades em alterar radicalmente a situação no terreno, apesar das suas boas vontades, como o Brasil ou mesmo a União Africana.
Só Pequim e o Presidente Xi Jinping conseguirão extrair o Presidente Volodymyr Zelensky de uma situação em que este, se colocou, ou foi colocado pelos seus conselheiros mais radicais, como Mikhailo Podoliak, ao ter criado legislação, apreovada no Parlamento, a Rada, que o impede de negociar com Vladimir Putin e, sem isso, não é possível encontrar uma saída definitiva.
Mas a China, com a sua única capacidade de incluir a Ucrânia na sua vasta rede comercial, a Nova Rota da Seda, apoiar a reconstrução do país no pós-guerra e financiar o equilíbrio da balança de pagamentos de Kiev, que está num caos, além de poder surgir como um protagonista que não apoiou militarmente nenhuma das partes, é a esperança europeia - mesmo contra a vontade da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do seu diplomata-chefe, Joseph Borrell - e do "Imenso Sul" para acabar com este foco de instabilidade global, desde logo alimentar nos países mais pobres porque os contendores são dois dos maiores exportadores de cereais do mundo.
Outro sinal oriundo de Washington, embora não sendo novo, mas agora é mais sonoro, é que a Administração Biden, que impediu, com o Reino Unido, do então primeiro-ministro Boris Johnson, em Março de 2022 as conversações de paz Kiev-Moscovo, diz agora que são os ucranianos que têm de decidir se e quando querem partir para as negociações de paz com os russos.
Será já um efeito-China? Ver-se-á em breve. Até porque americanos e chineses querem deixar para trás alguns alçapões, porque dependem mutuamente uns dos outros para as suas economias florescerem e esta guerra na Ucrânia está a ser um constrangimento irritante.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.