Um dos pesos-pesados da diplomacia do Vaticano, o cardeal italiano Matteo Zuppi, está em Kiev, devendo, embora ainda não exista confirmação, seguir depois para Moscovo, num derradeiro esforço do Papa Francisco para evitar um banho de sangue que se adivinha de proporções bíblicas, travando a contra-ofensiva ucraniana já iniciada.

O enviado especial de Francisco não tem mais de 48 horas para conseguir o "milagre" em que já quase ninguém acredita, que seria convencer os dois lados das trincheiras em encaminhar as hostilidades do gatilho para a batalha verbal da mesas das negociações. Rapidamente se saberá se valeu a pena.

Para já, o que se sabe é que Kiev tem em curso uma fase nova nesta guerra, que os russos dizem que se trata da contra-ofensiva, lançada em Vremevka, no Donetsk, que teria sido conduzida em duas fases, do Domingo e já esta manhã de segunda-feira, 05, ambas as tentativas de furar as linhas defensivas de Moscovo terão sido repelidas, embora a informação existente seja escassa.

O major general Agostinho Costa, especialista em estratégia militar, ouvido na RTP3, defende que este avanço em força na região de Donetsk, mas também em Vremevka, Mariinka e Adiivka, pode muito bem ser a fase inicial de a operação em larga escala de reconquista de territórios que os ucranianos falam há largas semanas, embora admita que nunca é de afastar a possibilidade de se tratar de mais uma manobra de deceção, que visaria baralhar os analistas militares russos que estão a preparar a resposta a essa contra-ofensiva.

Esta operação, na qual a Ucrânia estará a usar duas brigadas, perto de dez mil militares, foi precedida de um conjunto de manobras na região russa de Belgorod, com a penetração de unidades ligeiras ucranianas em território russo, provavelmente para obrigar os russos a deslocar meios para esta área, desguarnecendo a região "X" da operação principal.

E foi ainda antecedida de uma estranha operação comunicacional nos media ocidentais, com vários militares ucranianos fortemente armados a fazer o gesto do silêncio. Levando o dedo indicador aos lábios, como que a sublinhar que chegara o tempo de não falar da contra-ofensiva.

E ainda antes, o próprio Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, veio a público dizer que já tinha escolhido a data, embora sem indicar qual, para fazer avançar os mais de 100 mil homens das 12 brigadas organizadas pela NATO e algumas unidades de grande dimensão que já existiam, em força, contra as posições russas.

Aparentemente, estas manobras tácticas no terreno e comunicacionais foram aplicadas ao mesmo tempo, o que em si é também uma manobra táctica de laboratório criada para distrair as chefias russas que há meses preparam o terreno à espera dos ucranianos, criando fortalezas nas áreas elevadas, trincheiras anti-tanque, e linhas "dente de leão", igualmente anti-tanque, que são espigões enterrados no chão com pontas saídas na superfície que dificultam o trânsito dos carros de combate pesados, além de linhas diversas de trincheiras de protecção aos homens no terreno.

Tudo isto ao longo de centenas de quilómetros, mas especialmente no sul, nas áreas de Zaporizhia e Kherson, duas das regiões ucranianas anexadas por Moscovo, além do Donbass - Donetsk e Lugansk -, porque, segundo os analistas militares, major generais Agostinho Costa e Carlos Branco, especialistas militares ouvidos pelos media, só faz sentido, no olhar ucraniano, procurar cortar a linha territorial contínua entre o Donbass e a Península da Crimeia avançando sobre Melitopol, uma cidade considerada estratégica na região de Zaporizhia, a partir da qual se acede ao Mar Negro, na direcção sudoeste, e Mar de Azov, para sul, em linha recta.

Citado pelo site da Russia Today, o administrador de Zaporizhia, Vladimir Rogov, disse que este avanço ucraniano é diferente de todos os observados até aqui, melhor organizado e armado, mas que, para já, foi rechaçado, anunciando o Ministério da Defesa russo que ainda que foram abatidos centenas de militares ucranianos e mais de uma dezena de carros de combate.

De Kiev não são conhecidas declarações sobre este periclitante momento da contra-ofensiva, apesar da evidência, como o britânico The Guardian confirma, de que algo de grande envergadura está a decorrer nas regiões de Donetsk e Zaporizhia, avançando o que já se sabia do silêncio pedido pelas autoridades de Kiev sobre a actividade alargada e intensa no terreno, o que é uma confirmação aproximadamente definitiva de que algo de novo e diferente está em curso.

Menos sigiloso, o Ministério da Defesa russo, em comunicado, fez saber que os ucranianos avançaram na região de Zaporizhia com seis batalhões mecanizados e dois batalhões de carros de combate, na manhã de 04 de Junho, no Domingo, apelidando este avanço como "uma contra-ofensiva em larga escala" distribuída por cinco sectores na frente a sul de Donetsk.

Segundo esta comunicação de guerra de Moscovo, "o inimigo pretendia quebrar as linhas defensivas russas no local onde as crêem mais vulneráveis", a sul, sublinhando que "o objectivo não foi conseguido", embora de Kiev nada se saiba nem tenha sido avançada qualquer nota a contradizer esta "explicação" russa oficial.

Além dos 250 militares ucranianos mortos, esta informação destaca ainda a destruição de 16 carros de combate pesados, três veículos de combate de infantaria e 21 viaturas blindadas de transporte de tropas, deixando ainda a garantia de que o CEMGDA russo, Valery Gerasimov, está próximo da linha da frente a comandar as operações de defesa e análise da situação.

Os analistas admitem que, apesar de diferente, mais intensa e volumosa em meios humanos e armamento, esta contra-ofensiva ucraniana está ainda no começo e deverá rapidamente aumentar em meios e em largura de campo...

Ou seja, é um curto espaço temporal que o enviado do Papa a Kiev, e, provavelmente, a Moscovo, tem para aproveitar e tentar evitar uma carnificina que todos os analistas dizem que será de proporções jamais vistas na Europa desde o fim da II Guerra Mundial, em 1945, com as estimativas a apontarem para centenas de milhares de mortos e feridos dos dois lados.

Além desta tragédia em vidas humanas perdidas e destruídas, existe ainda um risco acrescido, à medida que a violência cresce no terreno, de escalada para patamares superiores de guerra, onde no topo está o recurso a armas nucleares.

E é também isso que o cardeal italiano Matteo Zuppi, que é o presidente da Conferência Episcopal italiana, tem em mente evitar, mesmo que a ideia de conflito nuclear aberto seja um pesadelo que ninguém admite ter caminho para andar, estando previsto permanecer em Kiev até amanhã, terça-feira, 06.

De acordo com a informação disponibilizada pelos media do Vaticano, a missão de Matteo Zuppi é sentar-se à mesa com as autoridades ucranianas, ouvir o que têm a dizer sobre esta guerra e a forma como admitem encaminhar uma solução das trincheiras para a mesa das negociações, onde homens a conversar é sempre melhor que homens a matarem-se uns aos outros.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.