A Rússia já tinha avisado para a possibilidade de suspensão do acordo de 22 de Julho, que Moscovo assinou com a Turquia e a ONU, e Kiev assinou também com estas duas entidades, garantindo assim a reabertura em segurança de um corredor que permitiu escoar milhões de toneladas de cereais e fertilizantes da Rússia e da Ucrânia, dois dos maiores exportadores do mundo, para os mercados internacionais, porque, segundo o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, os ucranianos aproveitaram este acordo não para, como estava pressuposto, enviar os grãos para países ameaçados pela fome em África e na Ásia, mas para fazer negócio com os países ricos da Europa ocidental e com os importadores ricos da Ásia, como a Coreia do Sul e o Japão.

Estes dados, divulgados pelos russos, e que são corroborados por documentos das Nações Unidas, estavam a pôr em em causa o acordo inicial, no qual o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, se empenhou pessoalmente sob o argumento de que a guerra na Ucrânia, impeditiva do trânsito de navios pelo Mar Negro, estava a gerar uma devastadora fome em áreas do mundo como o Corno de África - Somália, Quénia, Eritreia, Etiópia, Sudão e Sudão do Sul - ou ainda asiáticos, como o Iémen, o Líbano ou o Afeganistão, Paquistão... entre outros.

Com este pressuposto, justifica Moscovo, o acordo de 22 de Julho foi assinado em Istambul, para dar prioridade aos cereais para os países com maior insegurança alimentar, havendo na altura, uma vaga de notícias nos media ocidentais a sublinhar casos de fome, a morte de centenas de crianças na Somália, entre outros casos aberrantes, mas, ainda segundo os russos, a realidade revelou-se outra, porque, como o Novo Jornal noticiou aqui e aqui, apenas uma ínfima percentagem - menos de 3% - dos cereais carregados por navios que zarparam de portos ucranianos nas primeiras semanas após o acordo ser assinado, saiu para África e para a Ásia pobre.

Agora, com esta interrupção do acordo forçada pela Rússia depois do ataque ucraniano à sua frota do Mar Negro ancorada no Porto de Sebastopol, na Crimeia, que Moscovo garante ter repelido com escassos danos nas embarcações que estavam a ser usadas para garantir a segurança do corredor marítimo que liga(va) os portos ucranianos e russos a Istambul, na Turquia, onde está(va) a funcionar o mecanismo conjunto de controlo das cargas (JCC, na sigla em inglês), exigido por Moscovo para garantir que os navios não serviriam para fazer chegar armamento à Ucrânia, o Presidente ucraniano volta a argumentar com a ideia de que a fome volta a ameaçar os países mais pobres em África e na Ásia.

Porém, mais de 80 por cento dos navios carregados de cereais que saíram dos portos ucranianos desde 22 de Julho, foram descarregar em países europeus, na Turquia e em compradores ricos da Ásia, deixando os mais pobres servidos quase em exclusivo por embarcações alugadas pelas Nações Unidas e colocados no fim da extensa fila de navios à espera de atracar nos portos cerealíferos do sul da Ucrânia.

Preço do trigo dispara, do milho também

A medida internacional do trigo, o bushel, que é equivalente a cerca de 32 litros, está a subir mais de 6%, para 8,80 dólares, sendo a subida do milho cerca de 3%, para 7 USD, no mercado de futuros de Chicago, nos EUA, a referência mundial mais importante pare este sector, o que representa um aumento com forte impacto nos países mais dependentes da importação de cereais para alimentar os seus povos, estando nestas condições dezenas de países africanos e asiáticos, especialmente no Médio Oriente.

Se esta suspensão se revelar efectiva e os navios deixarem de poder circular no corredor de segurança criado a 22 de Julho, os analistas dos mercados cerealíferos estimam que os preços possam sofrer de novo impactos negativos semelhantes aos observados no início da guerra, quando o pânico tomou conta dos mercados depois de a tonelada de trigo atingir os 530 USD em Maio deste ano, a partir de pouco mais de 300 antes de 24 de Fevereiro, início da invasão russa da Ucrânia, estando agora de novo a bater nos 430 depois de ter descido para perto de 380 entre Julho e Agosto, graças ao acordo.

Face a este cenário sucedem-se os apelos internacionais à Rússia para retomar o acordo, desde logo a União Europeia e a NATO; as duas organizações mais empenhadas em alimentar o conflito na Ucrânia ou manterem um fluxo permanente de armamento para Kiev, tendo como objectivo assumido derrotar a Rússia no campo de batalha.

"Vladimir Putin tem de parar de usar os cereais como arma", disseram quase em uníssono responsáveis europeus e da NATO, voltando a alegar com a fome que pode voltar a ensombrar milhões de pessoas nos países mais pobres.

Também António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, veio a público dizer que está "profundamente preocupado" com a situação, e apontou, segundo o seu porta-voz, Stéphane Dujarric, está empenhado em "consultas intensas" para que a Rússia reveja a sua decisão, que põe em causa o vital fornecimento alimentar mundial.

Recorde-se que este acordo tinha como duração de 22 de Julho a 19 de Setembro, e Guterres estava a preparar a sua renovação, embora Moscovo já tivesse advertido que uma eventual renovação estaria sempre dependente de garantias de Kiev de que os seus cereais seriam prioritariamente exportados para os países mais necessitados e não os que se batem por eles nos mercados oferecendo valores que os mais pobres não podem pagar.

Ucrânia sob forte chuvada de misseis e drones

Na resposta russa ao ataque em Sebastopol, no Sábado, além da suspensão do acordo de Istambul, uma forte chuva de misseis e drones caíram sobre dezenas de cidades ucranianas, deixando ainda mais às escuras este país, que já se batia com fortes restrições de fornecimento de energia depois de Moscovo apontar os seus obuses à infra-estrutura eléctrica ucraniana após o ataque à ponte que liga a Crimeia à Rússia continental, há cerca de um mês.

Todas as regiões ucranianas estão desde Sábado sob aviso de ataque iminente, com sirenes a fazerem-se ouvir na maior parte das cidades.

O fornecimento de electricidade está a ser feito com cortes alargados, e planeados de forma a que a energia possa manter-se onde é mais urgente, como hospitais e indústrias estratégicas, face à devastação dos ataques russos às centrais eléctricas e linhas de abastecimento e transporte.

Na linha da frente dos combates, segundo a generalidade dos analistas militares, a propalada contra-ofensiva ucraniana em Kherson e em Kherkiv estão paradas, com um novo ímpeto da ofensiva russa a ser cada vez mais notado, especialmente através dos reforços proporcionado pela recente mobilização de mais de 300 mil militares para esta guerra que já vai para o seu 9º mês de duração.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.