Esta evolução é um recado frio e arriscado aos Estados Unidos e aos seus aliados ocidentais com uma clara mudança de regras: Pequim e Moscovo juntos podem ser confrontados, mas não derrotados.

Provavelmente esta visita do Presidente chinês à Rússia foi das mais pensadas, reflectidas e exigentes diplomaticamente durante muitas décadas, provavelmente com uma importância apenas comparável com a ida do Presidente norte-americano, Richard Nixon, à Pequim de Mao Tse Tung, na década de 1970, abrindo uma porta ocidental no feudo comunista do "Grande Timoneiro", como se auto-intitulava o líder chinês.

Tudo, porque esta visita, clarament,e descola, mesmo que não totalmente, o gigante asiático da sua posição de relativa neutralidade face a um ocidente euro-norte-americano cada vez mais agressivo para com a Rússia de Vladimir Putin.

Já se sabia que Xi Jinping iria a Moscovo, só não se sabia que seria tão cedo, sendo a agenda oficial preenchida com as costumeiras ideias gerais de discussão de temas internacionais de interesse comum e aprofundamento das relações bilaterais.

A questão é que já se sabe que as relações bilaterais entre chineses e russos são "sólidas como uma rocha", como afirmou há um ano o então ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, e "ilimitadas", como sublinhou o seu sucessor, Qin Gang, já este ano.

Resta agora saber o que é que pode ser mais sólido que uma rocha e mais abrangente que ilimitada nas relações entre duas superpotências militares, ambas com forte dimensão nuclear e que não têm escondido que está em curso uma histórica aproximação a esse nível.

E, se dúvidas houvessem, seriam diluídas pelos exercícios militares navais conjuntos que chineses e russos realizaram nas costas da África do Sul, em Fevereiro, com o país anfitrião, e agora com outros a decorrer no Golfo Pérsico, entre China, Rússia e Irão.

Um tema de absoluto interesse comum é a guerra na Ucrânia, especialmente depois de há cerca de duas semanas Pequim ter divulgado a sua posição no contexto deste conflito, que é de defesa de uma solução negociada, um cessar-fogo célere e o fim das sanções, com igual peso apontando para a defesa da soberania ucraniana sobre os seus territórios.

Este conflito, disruptivo da globalização como nenhum outro, é a ferramenta em ruidoso uso na construção de uma nova ordem mundial pelo eixo Pequim-Moscovo, com vários outros aliados nesse esforço, embora com empenhos menos expostos mas não menos importantes, como a Índia, a África do Sul, ou mesmo o Brasil, a Argentina, a Indonésia, entre outros, como a Argélia ou o Egipto e o Sudão, para referir alguns em África.

E, com este cenário em pano de fundo, o que se pode esperar da China?

É evidente que Pequim não vai abrir mão da sua amizade de aço com Moscovo, mas é igualmente uma certeza que Xi Jinping quer acabar com o conflito no leste europeu o mais rápido possível.

Isso, porque este conflito no leste europeu é um empecilho naquilo em que a China ganha face ao resto da concorrência... o comércio internacional, para o qual o mundo ocidental é fundamental e as relações entre Pequim e a União Europeia e EUA têm-se degradado por causa da recusa intransigente dos chineses em alinharem nas sanções ocidentais aos russos.

Alias, tanto norte-americanos como europeus têm feito ameaças sonoras de aplicação de sanções à China se esta fornecer armas à Rússia, o que indispôs claramente o Governo de Xi JInping, que perguntou a Washington qual a diferença entre a China fornecer armamento ao Kremlin e os Estados Unidos estarem a armar Taiwan, a ilha rebelde que a China admite reintegrar à força no seu "mapa" efectivo.

A resposta a esta pergunta, e a outras, será dada ao longo dos três dias, entre segunda-feira e quarta-feira da próxima semana, de 20 a 22 de Março, que Moscovo vai acolher Xi Jinping, com o ponto alto desta visita, a primeira, o que lhe dá uma importância simbólica inigualável, que faz desde que assumiu oficialmente funções para um 3º mandato.

E o que for, vai sair das longas conversas que Xi vai manter com o seu amigo Vladimir, nas acolhedoras salas e nos passeios nos jardins do Kremlin, agora que a Primavera desponta, podendo as cerca de duas dezenas de acordos que deverão ser assinados ou preparados durante estes três dias, dar pistas fundamentais para o que se seguirá.

Todavia, como o Russia Today, media estatal russo, nota, os dois lideres têm mantido conversas permanentes por telefone, versando essencialmente o conflito na Ucrânia e as relações comerciais - que já está no patamar dos 200 mil milhões USD -, marcadas por um crescendo expressivo, tanto no fornecimento de crude e gás russos à China, como a ocupação por parte da indústria chinesa do espaço deixado vazio pelas multinacionais ocidentais, desde o sector automóvel à aviação, após o início da operação militar especial, na Ucrânia, como Putin lhe chamou.

É, no entanto, numa possível mais assertiva acção de Pequim na procura de um cessar-fogo na Ucrânia que o mundo está focado, até porque o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês admitiu já que, antes ou depois desta visita, Xi Jinping deverá falar ao telefone com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, até porque Pequim não quer perder o espaço que pertence aos mediadores das partes em guerra, até porque é a única grande potência mundial que não está no papel de beligerante ou co-beligerante, como estão os europeus e os EUA ao fornecerem caudais volumosos de material de guerra e dinheiro a Kiev.

Alguns analistas admitem como hipótese remota que Jinping e Putin venham a esticar a corda, nomeadamente no que diz respeito ao fornecimento de armamento à Rússia pela China, porque no resto, na dimensão diplomática e comercial, dificilmente será alcançada mais proximidade... e quando Pequim diz que quer reforçar as relações bilaterais, provavelmente, só resta a dimensão militar para o conseguir...

Esta colaboração militar pode ser até apressada depois de se ter sabido já esta semana que a Polónia é o primeiro pais ocidental a avançar para a entrega de aviões de guerra à Polónia, estando para já na calha quatro MIG-29, e outros dez em modernização acelerada para serem oferecidos a Kiev, abrindo assim as portas à possibilidade, já admitida por americanos e europeus, de serem transferidos para a Ucrânia grupos de combate compostos por F-16 norte-americanos.

Sendo a entrega de caças uma clara escalada no apoio ocidental, vai isso ser usado por Moscovo e Pequim para que seja dado o passo que muitos temem ser já inevitável de a China começar a apoiar militarmente a Rússia? Saber-se-á nos próximos dias ou semanas...

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.