A União Africana (UA) está a ser desafiada por centenas de africanos, muitos deles figuras conhecidas, através de um abaixo-assinado, de forma a que o pesadelo humanitário de Tigray não fique esquecido, como parecem estar já outras tragédias humanitárias em África, como a do Sudão do Sul, ou a do leste da RDC, onde centenas de milhares de pessoas permanecem em campos de refugiados à mercê de bandos armados e dependentes da escassa ajuda que lhes chega a conta gotas.

Neste documento é exigido à UA que sirva de mediador para procurar uma solução para o conflito de Tigray, entre a TPLF e as forças leais a Adis Abeba do primeiro-ministro Ahmed, que em 2019 ganhou o Prémio Nobel da Paz devido à sua intervenção no fim da guerra entre a Etiópia e a Eritreia mas que, no ano seguinte, esteve na linha da frente de uma nova guerra sem, aparentemente, fim à vista e que já levou milhões de pessoas a deixarem as suas casas, muitas para procurar segurança nos países vizinhos, nomeadamente o Sudão.

Apesar de as chefias militares, como o Novo Jornal noticiou na altura - aqui, aqui, aqui, aqui, aqui - terem, em finais de 2020, afirmado que a guerrilha de Tigray estava dominada e que a sublevação regional da TPLF não tinha mais caminho para andar, a verdade é que esta guerra não parou, pelo contrário, intensificou-se e os seus efeitos devastadores sobre as populações locais, afectando já as regiões vizinhas de Tigray, Afar e Amhara, parecem estar para durar, especialmente devido às fugas em massa de populações, dos bloqueios militares que impedem a circulação de bens, nomeadamente alimentares e medicamentos.

Uma guerra sem fronteiras pode estar a emergir em Tigray

O risco de um ainda mais vasto alastramento deste conflito é grande, até porque a Etiópia, com cerca de 110 milhões de habitantes, é o segundo país mais populoso de África e o seu histórico de conflitos, nomeadamente com a vizinha Eritreia, deixa em aberto isso mesmo, até porque o prolongado e trágico conflito entre os dois países durou enquanto o poder em Adis Abeba esteve nas mãos de pessoas com origem em Tigray, a província etíope que tem a maior fronteira com os eritreus, a norte, e que hoje integram o grosso das forças leais a Abiy Ahmed no seu combate à TPLF.

Nesta carta aberta, os seus signatários alertam que se nada for feito para travar esta guerra, dela pode nascer a mais grave crise humanitária em muitas décadas no continente, até porque a Etiópia, país que alberga a sede da União Africana, é uma espécie de força motriz indispensável para a estabilidade da vasta região do Corno de África e que, agora, também parece estar a sucumbir a um pesado conflito interno, que já tem ramificações na Eritreia e no Sudão e que a Somália e o Quénia tendem a ser igualmente implicados devido à proximidade geográfica e às implicações no esforço de luta contra o terrorismo do al-shabbab, como notam já alguns analistas.

Apesar de ter sido agraciado com o Nobel da Paz, Ahmed vive actualmente um momento de poucas graças entre a comunidade internacional devido ao seu empenho nesta guerra sem que para ela tenha um previsível fim, embora tenha dado início nas últimas semanas a um períplo por algumas capitais africanas, e ainda à Turquia, nomeadamente Kigali, Ruanda, onde reuniu com o Presidente Paul Kagame, Kampala, do Uganda, com Yoweri Musevini, e ainda a Ancara, a capital turca, onde procurou em Recep Erdogan um pilar seguro para suportar a sua visão fora do continente e com isso ganhar densidade no apoio político que lhe começa a escapar, como sublinham alguns analistas citados pelos media internacionais.

Em declarações à DW, Michael Tanchum, do Instituto Austríaco para a Política Europeia e de Segurança, não escondeu que a Turquia é um pilar essencial na visão de Abiy Ahmed porque Ancara vê na Etiópia um esteio para a sua política económica para a África Oriental, região onde deposita fortes expectativas de expansão económica e influência que permitam o acesso aos desejados recursos naturais para alimentar a sua forte indústria exportadora.

No entanto, a presença da Turquia enquanto protagonista nesta complexa geografia parece ter um efeito perigoso, na perspectiva de Mamadou Diouf, o académico senegalês que também assina a carta, defendendo que, como os restantes, este conflito deve ser resolvido com esforço africano, especialmente pela União Africana.

O histórico

O Exército etíope lançou em Novembro de 2020 uma operação de caça ao homem depois de concluída a operação de assalto à cidade de Mekelle, capital da província independentista de Tigray, no norte da Etiópia, que servia de último reduto aos guerrilheiros da Frente Popular de Libertação de Tigray.

Depois de cair o seu último reduto, os guerrilheiros da TPLF, liderados por Debretsion Gebremichael, optaram por procurar novo terreno de combate nas intrincadas montanhas da província que ladeiam a cidade de Mekelle que fica a mais de 2.500 metros de altitude, onde estão, reagruparam para manter a chama dos combates acesa, já lá vão nove longos e trágicos meses.

O desgaste que esta guerra de atrito pode gerar nas forças federais com o correr do tempo pode virar-se contra Ahmed, que dificilmente poderá continuar a justificar o aumento de mortes entre civis que, segundo as ONG no terreno, são já milhares, crendo-se que o mesmo sucede entre os militares, embora nessa aspecto a informação seja mais difícil de obter.

Para já, existem sinais de que a FPLT mantém capacidade de responder e de contra-atacar, visto que a capital da Eritreia, Asmara, que dista escassas dezenas de quilómetros da fronteira com Tigray (Etiópia) chegou a ser atingida por foguetes lançados pelos guerrilheiros de Debretsion Gebremichael.

Esta guerra resultou de meses a fio de um constante e sólido aumento das tensões entre os rebeldes e o Governo de Abiy Ahmed, depois de o seu Governo ter adiado eleições devido à pandemia mas com os lideres de Tigray a realizarem-nas na mesma, gerando uma insustentável quebra no diálogo e dando o mote para disparar a primeira bala, cujo ruído ainda hoje se ouve, tendo, pelo caminho, causado milhares de mortos e feridos e centenas de milhar de refugiados naquele que era um dos mais promissores países africanos.

A ofensiva governamental foi lançada depois de Abiy Ahmed ter acusado a TPLF de ter atacado uma guarnição militar regular, apoderando-se do armamento ali estacionado. As primeiras batalhas vieram mesmo dos céus, com a Força Aérea a fazer raides diários sobre Tigray.

As animosidades têm, no entanto, uma génese histórica, porque as elites políticas de Tigray, região com apenas 9 milhões dos 109 milhões de habitantes da Etiópia, o segundo país mais populoso do continente, governaram a Etiópia durante décadas até que o actual primeiro-ministro Abiy Ahmed, chegou ao poder, em 2018.

Recorde-se que a FPLT manteve uma guerra intensa com as forças federais entre 1975 e 1991 que culminou com o acesso ao poder deste movimento em Adis Abeba, que durou décadas.

Abiy Ahmed é natural de Beshasha, região-estado de Oromia (cuja capital é Adis Abeba, em acumulação com a capital do país), com 35 milhões de habitantes, no centro da Etiópia, e o povo Oromo, histórico rival do povo Tigrayan, que conseguiu manter as rédeas do poder etíope nas últimas décadas, praticamente desde a morte de Haile Selassie, em 1974, também ele, tal como Abiy Ahmed, natural de Oromia.

Agressão aos Direitos Humanos

Já em Março deste ano, quando a pandemia ainda contribuía mais que hoje para "esconder" esta tragédia etíope, as Nações Unidas lançavam o repto a Abiy Ahmed para permitir o acesso de investigadores internacionais de modo a monitorizar a situação e conformar ou não as alegações de várias ONG de que ali estão a ocorrer graves falhas no capítulo dos Direitos Humanos e crimes de guerra.

Também a Alta Comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, divulgou uma nota onde diz que as violações dos Direitos Humanos não serão esquecidos e que as suas "vítimas terão direito à justiça e à verdade".

Os dedos não estão apenas apontados às forças leais a Adis Abeba, também a guerrilha da TPLF tem contas a ajustar no que diz respeito às violações dos direitos humanos e eventuais crimes de guerra.