O terror por que passam milhões de pessoas na província moçambicana de Cabo Delgado, norte do país, junto à fronteira com a Tanzânia, esteve adormecido durante anos, mas, agora, nas últimas semanas, o aumento da brutalidade sobre crianças e mulheres, e, com maior ênfase, o assalto à vila de Palma, tiveram como consequência imediata a saída da obscuridade deste conflito que já produz terror desde 2017.

Cabo Delgado, área geográfica rica em gás natural e pedras preciosas, voltou às páginas e ecrãs do mundo inteiro depois de se saber que crianças e mulheres estavam a ser decapitadas por radicais islâmicos ligados ao `estado islâmico" e chegou aos destaques dos principais noticiários das grandes cadeias de televisão depois de uma ousada iniciativa militar dos radicais que tomaram de assalto uma localidade estratégica, Palma, com 40 mil habitantes, no extremo norte da província do país.

Este conflito já ceifou a vida a mais de 2.600 pessoas desde que em 2017 se começaram a ouvir as primeiras notícias, ainda sob a forma de rumores, de que grupos de barbudos, com ligações ao jihadismo internacional, estavam a amedrontar as populações que viviam nalgumas áreas de Cabo Delgado.

Coincidentemente, nestas áreas estavam a ter início as preparações para a exploração de gás natural pela gigante francesa Total, os rubis estavam a ofuscar os olhos dos traficantes e o negócio internacional de drogas pesadas assentava campo nestas latitudes.

O silêncio que ensurdecia

Depois de longos meses de um silêncio ensurdecedor nos media internacionais, com raras excepções, como os portugueses Lusa e RTP, sobre este conflito esquecido mas de vertigem sanguínea sentida pelas massacradas populações, eis que a Save the Children, uma conhecida ONG internacional, divulga um relatório incandescente sobre as monstruosidades cometidas pelos radicais afectos ao al-shabbab - estado islâmico (isis) -, sublinhando as decapitações de jovens rapazes e mulheres que se recusavam a juntar-se à sua "causa".

Primeiro nos rodapés das cadeias internacionais de TV e nas páginas secundárias dos maiores jornais do planeta, depois, quando o mundo foi surpreendido - mais uma vez - pela tomada militar de Palma pelos radicais, com os seus 40 mil habitantes - cerca de 10 mil conseguiram fugir para as matas - e centenas de estrangeiros ligados ao projecto de exploração de gás da Total, alguns dos quais mortos nos combates e nos ataques a caravanas de viaturas com gente em busca de refúgio fora da localidade, o assunto passou a ser destaque em todo o mundo.

Desde logo, a reacção dos Estados Unidos, que, através do porta-voz do Pentagono, John Kirby, veio reafirmar o empenho no apoio ao Governo do Presidente Filipe Nyusi, ou da União Europeia, com Portugal, que preside aos 27, a assumir que, tal como os EUA, vai, a pedido de Maputo, enviar instrutores militares para formar tropas especiais das Forças Armadas moçambicanas no combate ao terrorismo.

Também a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) analisou, em finais de 2020, este problema, prometendo solidariedade, mas, como tem sido comum, pouco ou nada sucedeu desde então por parte da comunidade lusófona, que tem, actualmente, Angola a presidi-la

Entretanto, o Governo de Maputo fez saber que não aceita militares estrangeiros a combater os radicais no seu território, apenas permite que as tropas moçambicanas recebam instrução militar para o efeito, como avançou o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, que chefiou uma missão da União Europeia a Moçambique para abordar este assunto com o Governo de Nyusi.

Com a vila de Palma tomada pelos radicais - o que poderá colocar em causa o projecto de exploração de gás -, pelo menos é isso que está a ser afirmado pela agência oficial do isis, embora as autoridades moçambicanas o refutem, mas sem uma observação independente para confirmar nenhuma das possibilidades, e com a morte de estrangeiros, a região em carne viva que é Cabo Delgado há quase três anos, passou a ser importante. Mas a própria União Africana tarda a assumir uma posição sólida sobre este problema.

O que conta quem mais sofre

Todavia, os relatos de pessoas que conseguiram fugir da localidade de Palma, apontam claramente para a forte possibilidade de esta vila estar efectivamente sob domínio dos grupos radicais, depois de vários dias de ataques, tendo perto de duas centenas de estrangeiros conseguido escapar para Pemba, capital da província de Cabo Delgado, num barco que deixou o local debaixo de fogo.

Menos afortunados, os locais, milhares de pessoas, procuraram refúgio nas florestas densas da região e, depois, começaram a rumar a sul, com o objectivo de chegar a Pemba, onde estão concentradas as organizações internacionais que fornecem apoio alimentar e assistência médica.

Mas o terror em Palma está longe de terminar, calculando as agências da ONU que largos milhares de pessoas estejam ainda em Palma, e nos seus arredores - a área urbana da vila está quase deserta -, a aguardar pela oportunidade de fugir.

No seu mais recente relatório, datado de 29 de Março, segunda-feira, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (UNOCHA), enfatiza a gravidade da situação no município de Palma, falando em mais de 110 mil pessoas a viverem sob terror nesta área.

Esta unidade da ONU refere ainda que é "muito difícil" obter informações exactas do que sucede na área atacada pelos grupos armados, sublinhando que foram criados pontos de recepção aos refugiados provenientes de Palma.

E nota que, além dos habitantes naturais de Palma, a vila conta ainda com milhares de pessoas que já tinham ido ali parar fugidas de outras localidades atacadas pelos jihadistas.

No entanto, a versão do Governo de Maputo aponta no sentido de continuarem a ser tropas governamentais a resistir aos ataques dos radicais, mantendo a disputa apertada pelo controlo da vila de Palma.

Recorde-se que os ataques dos radicais islâmicos coincidem no tempo e no espaço com o anúncio inicial da descoberta de estrondosas reservas de gás natural no offshore da província, sendo Palma o "alvo" conquistado pelo isis-al shabbab mais próximo do gigantesco projecto de exploração da matéria-prima.

Com esta acção militar, segundo alguns analistas, a continuação do projecto - que nem sequer começou ainda a produzir - pode estar comprometida, visto que os técnicos, estrangeiros, na generalidade, ou já deixaram a região ou estão em vias de o fazer, especialmente para Pemba, que dista perto de 300 km do local, direcção sul.

Para a fuga, como relatam as agências, tanto as populações locais como muitos estrangeiros, estão a usar todo o tipo de métodos, desde logo nas pequenas embarcações de pesca artesanal das aldeias costeiras, até longas travessias a pé pelo meio de densas florestas, ou em arriscadas caravanas com escassa protecção armada...

O aparente fácil avanço dos grupos radicais não está a ser travado quer pelas forças armadas moçambicanas quer pelos muitos "mercenários" contratados pela Total a empresas de segurança na África do Sul.

Reacção do Governo

Entretanto, o ministro da Defesa moçambicano, citado pela AFP, garantiu que as Forças Armadas estão a "reforçar as suas posições e meios no terreno de forma a conter o avanço criminoso dos terroristas, repelir os seus ataques e repor a normalidade em Palma, concentrando-se, todavia, nesta fase, no resgate das centenas de pessoas que procuram segurança".

A maior parte das vítimas mortais destes ataques são habitantes locais sem ligações nem ao projecto da Total nem políticas, que apenas procuravam escapar dos ataques, tendo muitos, segundo a Human Rights Watch, sido abatidos a sangue-frio quando fugiam das suas casas que eram alvejadas sem qualquer motivo aparente.

Esta violência, difícil de explicar, tem como cenário uma região que, de repente, passou das mais pobres do país para uma das com maior potencial, seja porque surgiu o projecto de gás natural da Total, seja devido à descoberta de largas jazidas de rubis, seja porque a área foi colocada no mapa do tráfico de drogas internacional.

Mas a coincidência é apenas referida de forma tímida nalgumas análises ao fenómeno sem que exista uma abordagem oficial a essa evidência.

O que surge como facto é que a crescente presença dos radicais islâmicos na região, de forte maioria muçulmana, desde sempre, dificilmente poderia ter passado sem que o alarme fosse dado e analisado pelas autoridades moçambicanas.

No entanto, o que sucedeu foi que estes grupos, agora claramente ligados ao isis, puderam crescer e fortalecer posições entre as populações locais, com elevados índices de pobreza, das mais altas do país, sem qualquer oposição. Os resultados estão à vista...