É uma visita histórica e o que Moscovo e Pequim querem, pelo que se pode ler nos sinais emitidos nos dias que a antecedem, é alicerçar o plano de médio prazo para criar uma nova ordem mundial, multipolar e baseada na cooperação entre pares, afastando-se progressivamente da actual ordem vigente, criada no rescaldo da II Guerra Mundial, baseada em regras ditadas pelos Estados Unidos da América.

E isso não deverá apanhar ninguém de surpresa, não só porque Xi Jinping repetiu isso mesmo antes de embarcar para esta deslocação histórica a Moscovo, a primeira que faz, o que lhe confere importância simbólica evidente, após ter sido empossado para o terceiro mandato, mas especialmente porque os dois Governos há muito que anunciaram que pretendem "libertar" o mundo dos ditames norte-americanos, como ficou claro em Março de 2022 num encontro entre os ministros dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, e chinês, Wang Yi, como o Novo Jornal relatou aqui.

Mas se tal não fosse bastante, Xi JInping, horas antes de embarcar para Moscovo, fez questão de sublinhar novamente o intento que une os dois países, a Rússia, o maior, em dimensão geográfica, pais do mundo, atravessado por 11 fusos horários, e a maior superpotência nuclear do planeta, e a segunda maior economia global e já considerada por muitos a maior força militar convencional.

Disse Xi que China e Rússia embarcaram juntas numa empreitada que visa criar uma nova ordem mundial onde nenhum país dita a ordem internacional dos acontecimentos, libertando-se de um contexto internacional dominado pelos Estados Unidos da América e que esse percurso de geração de uma ordem multiplar já não será parado em nenhuma circunstância.

Num artigo assinado por Xi Jinping publicado no jornal russo Rossiyskaya Gazeta - Vladimir Putin também assinou um artigo no jornal chinês Diário do Povo - pode ler-se que "o mundo está hoje a atravessar grandes desafios que não eram vistos em mais de um século", avisando que para enfrentar esses desafios, Pequim e Moscovo "erguerem uma plataforma de cooperação histórica e imparável com ganhos mútuos".

E, num claro recado para os EUA e os seus aliados ocidentais e do ocodente alargado, que abrange ainda Japão, Coreia do Sul e Austrália, avisou que já é "irreversível o caminho que está a ser feito para erguer um mundo multipolar, a globalização económica e o fortalecimento da democracia nas relações internacionais".

Deixou ainda recados sobre a necessária criação de um novo olhar sobre o mundo, admitindo que este enfrenta desafios tradicionais e outros inesperados no âmbito da segurança internacional, bem como situações indesejáveis de "actos hegemónicos, de dominação e intimidação" num contexto global onde "muitos países buscam forma de, em conjunto, sair da crise ao mesmo tempo que lutam contra uma "longa e tortuosa recuperação da crise económica".

Sobre a guerra na Ucrânia, Xi deixou vários recados, notando que enquanto é visível que alguns países procuram abrir caminho para solução negociadas, outros, num remoque aos EUA e à União Europeia, mostram-se menos receptivos a esse caminho, tendo acrescentado que as partes "acabarão por abraçar uma abordagem comum e abrangente, cooperativa e sustentável" que garanta a segurança através do "diálogo e da consulta", o que considerou ser a matéria-prima para uma "saída razoável para a crise".

Putin, por seu lado, no Diário do Povo, assinou um artigo onde se refere a XI Jinping como "velho e bom amigo", com o qual se vai encontrar informalmente já esta segunda-feira, sublinhando o "papel construtivo" de Pequim na procura de uma saída para a crise na Ucrânia.

Disse ainda, alinhado com Jinping, que os EUA insistem numa "política de duas caras" com a qual procura "conter a China e a Rússia" tal como todos os outros países que desafiam o domínio norte-americano, deixando a garantia de que tal política está condenada e que a parceria ilimitada entre Pequim e Moscovo está a contribuir decisivamente para o seu desmantelamento.

Putin disse ainda que o ocidente está cada vez mais "agarrado a dogmas arcaicos" que alimentam a sua "ilusão de domínio" que está a colocar "o destino de Estados e nações em risco".

O chefe do Kremlin agradeceu a Xi Jinping o comportamento balanceado face ao que está a acontecer na Ucrânia, notando que o Governo chinês fez mais que outros para entender o contexto histórico "e as causas verdadeiras que estão pode detrás dela", em que esta guerra, vista em Moscovo como uma "operação militar especial" foi desencadeada

Sequelas expectáveis desta visita

Não há certezas nem abordagens únicas a esta ida de Xi a Moscovo, mas é altamente provável que depois desta visita nada ficará como dantes no xadrez global das relações internacionais, porque a Federação Russa e a China passam a ser mais que aliados, serão a segurança vital para o futuro de ambos, ao Pequim deixar cair em definitivo a ideia, mesmo que já fosse escassa, de equidistância, e a confirmação de que Moscovo conta com Pequim para anular qualquer tentativa de isolamento internacional no contexto da guerra na Ucrânia e da empenhada actividade ocidental com esse fito.

Alias, esta visita emerge num contexto de forte proximidade com a decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) de acusação a Putin de crimes de guerra, emitindo um mandado de busca, o que alguns analistas, como o major general Agostinho Costa, especialista em questões militares e geoestratégicas, considera, numa análise para a CNN Portugal, que estão intimamente ligados e teve como objectivo desvitalizar a importância desta ida de Jinping à capital russa.

Tal decisão não beliscou em nada a programada visita e, segundo o mesmo analista, o facto de o TPI ter, neste particular momento, à frente um juiz polaco e um procurador britânico, dois países com permanente foco e empenho na frente anti-Rússia, é demonstrativo de como tudo está ligado no ocidente para reforçar a dimensão sancionatória de Moscovo.

Esta evolução é um recado frio e arriscado aos Estados Unidos e aos seus aliados ocidentais com uma clara mudança de regras: Pequim e Moscovo juntos podem ser confrontados, mas não derrotados.

Sobre o mandado do TPI, a China reagiu oficialmente pedindo a este tribunal, que não tem respaldo nas estruturas das Nações Unidas e do qual não fazem parte, não assinando os tratados que o permitiram, países como os EUA, a Rùssia, a China, Israel ou a Ucrânia, que não use "duas políicas" dependendo das circunstâncias.

Para o Governo chinês, o TPI "não pode abandonar uma postura imparcial e objectiva" e tem de "respeitar a imunidade dos chefes de Estado ao mesmo tempo que evita a politização da sua acção, escolhendo critérios conforme as situações", disse Wang Wenbin, porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros da China.

Provavelmente esta visita do Presidente chinês à Rússia foi das mais pensadas, reflectidas e exigentes diplomaticamente durante muitas décadas, provavelmente com uma importância apenas comparável com a ida do Presidente norte-americano, Richard Nixon, à Pequim de Mao Tse Tung, na década de 1970, abrindo uma porta ocidental no feudo comunista do "Grande Timoneiro", como se auto-intitulava o líder chinês.

Tudo, porque esta visita, clarament,e descola, mesmo que não totalmente, o gigante asiático da sua posição de relativa neutralidade face a um ocidente euro-norte-americano cada vez mais agressivo para com a Rússia de Vladimir Putin.

Já se sabia que Xi Jinping iria a Moscovo, só não se sabia que seria tão cedo, sendo a agenda oficial preenchida com as costumeiras ideias gerais de discussão de temas internacionais de interesse comum e aprofundamento das relações bilaterais.

A questão é que já se sabe que as relações bilaterais entre chineses e russos são "sólidas como uma rocha", como afirmou há um ano o então ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, e "ilimitadas", como sublinhou o seu sucessor, Qin Gang, já este ano.

Resta agora saber o que é que pode ser mais sólido que uma rocha e mais abrangente que ilimitada nas relações entre duas superpotências militares, ambas com forte dimensão nuclear e que não têm escondido que está em curso uma histórica aproximação a esse nível.

E, se dúvidas houvessem, seriam diluídas pelos exercícios militares navais conjuntos que chineses e russos realizaram nas costas da África do Sul, em Fevereiro, com o país anfitrião, e agora com outros a decorrer no Golfo Pérsico, entre China, Rússia e Irão.

Um tema de absoluto interesse comum é a guerra na Ucrânia, especialmente depois de há cerca de duas semanas Pequim ter divulgado a sua posição no contexto deste conflito, que é de defesa de uma solução negociada, um cessar-fogo célere e o fim das sanções, com igual peso apontando para a defesa da soberania ucraniana sobre os seus territórios.

Este conflito, disruptivo da globalização como nenhum outro, é a ferramenta em ruidoso uso na construção de uma nova ordem mundial pelo eixo Pequim-Moscovo, com vários outros aliados nesse esforço, embora com empenhos menos expostos mas não menos importantes, como a Índia, a África do Sul, ou mesmo o Brasil, a Argentina, a Indonésia, entre outros, como a Argélia ou o Egipto e o Sudão, para referir alguns em África.

E, com este cenário em pano de fundo, o que se pode esperar da China?

É evidente que Pequim não vai abrir mão da sua amizade de aço com Moscovo, mas é igualmente uma certeza que Xi Jinping quer acabar com o conflito no leste europeu o mais rápido possível.

Isso, porque este conflito no leste europeu é um empecilho naquilo em que a China ganha face ao resto da concorrência... o comércio internacional, para o qual o mundo ocidental é fundamental e as relações entre Pequim e a União Europeia e EUA têm-se degradado por causa da recusa intransigente dos chineses em alinharem nas sanções ocidentais aos russos.

Alias, tanto norte-americanos como europeus têm feito ameaças sonoras de aplicação de sanções à China se esta fornecer armas à Rússia, o que indispôs claramente o Governo de Xi JInping, que perguntou a Washington qual a diferença entre a China fornecer armamento ao Kremlin e os Estados Unidos estarem a armar Taiwan, a ilha rebelde que a China admite reintegrar à força no seu "mapa" efectivo.

A resposta a esta pergunta, e a outras, será dada ao longo dos três dias, entre segunda-feira e quarta-feira da próxima semana, de 20 a 22 de Março, que Moscovo vai acolher Xi Jinping, com o ponto alto desta visita, a primeira, o que lhe dá uma importância simbólica inigualável, que faz desde que assumiu oficialmente funções para um 3º mandato.

E o que for, vai sair das longas conversas que Xi vai manter com o seu amigo Vladimir, nas acolhedoras salas e nos passeios nos jardins do Kremlin, agora que a Primavera desponta, podendo as cerca de duas dezenas de acordos que deverão ser assinados ou preparados durante estes três dias, dar pistas fundamentais para o que se seguirá.

Todavia, como o Russia Today, media estatal russo, nota, os dois lideres têm mantido conversas permanentes por telefone, versando essencialmente o conflito na Ucrânia e as relações comerciais - que já está no patamar dos 200 mil milhões USD -, marcadas por um crescendo expressivo, tanto no fornecimento de crude e gás russos à China, como a ocupação por parte da indústria chinesa do espaço deixado vazio pelas multinacionais ocidentais, desde o sector automóvel à aviação, após o início da operação militar especial, na Ucrânia, como Putin lhe chamou.

É, no entanto, numa possível mais assertiva acção de Pequim na procura de um cessar-fogo na Ucrânia que o mundo está focado, até porque o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês admitiu já que, antes ou depois desta visita, Xi Jinping deverá falar ao telefone com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, até porque Pequim não quer perder o espaço que pertence aos mediadores das partes em guerra, até porque é a única grande potência mundial que não está no papel de beligerante ou co-beligerante, como estão os europeus e os EUA ao fornecerem caudais volumosos de material de guerra e dinheiro a Kiev.

Alguns analistas admitem como hipótese remota que Jinping e Putin venham a esticar a corda, nomeadamente no que diz respeito ao fornecimento de armamento à Rússia pela China, porque no resto, na dimensão diplomática e comercial, dificilmente será alcançada mais proximidade... e quando Pequim diz que quer reforçar as relações bilaterais, provavelmente, só resta a dimensão militar para o conseguir...

Esta colaboração militar pode ser até apressada depois de se ter sabido já esta semana que a Polónia é o primeiro pais ocidental a avançar para a entrega de aviões de guerra à Polónia, estando para já na calha quatro MIG-29, e outros dez em modernização acelerada para serem oferecidos a Kiev, abrindo assim as portas à possibilidade, já admitida por americanos e europeus, de serem transferidos para a Ucrânia grupos de combate compostos por F-16 norte-americanos.

Sendo a entrega de caças uma clara escalada no apoio ocidental, vai isso ser usado por Moscovo e Pequim para que seja dado o passo que muitos temem ser já inevitável de a China começar a apoiar militarmente a Rússia? Saber-se-á nos próximos dias ou semanas...