Historicamente, sempre houve moedas globais, desde o Solidus de Bizâncio (do século VI até ao século X) até ao dólar ("Peso fuerte"), espanhol (século XVII até ao século XVIII), moeda que influenciou a criação do dólar americano depois da independência. Desde a Segunda Guerra Mundial que a moeda de transacções mundiais é o dólar americano, que substituiu a libra britânica.
Importa também relembrar que uma moeda tem três funções: é meio de troca, é reserva de valor e é unidade de conta. O yuan cumpre essas funções no plano interno, mas no plano externo o yuan não é ainda inteiramente convertível. A guerra na Ucrânia mudou esse cálculo, os chineses como bons alunos assistiram ao congelamento do dinheiro russo em dólares e euros, e, na possibilidade de um conflito com o Ocidente, não vão querer correr o mesmo risco que a Rússia e vão, nos próximos anos, acelerar as reformas no sector financeiro, para permitir um mercado de dívidas em yuan (a grande vantagem dos EUA é essa escala e liquidez) e a sua internacionalização.
Outro país fulcral nesse passo é a Arábia Saudita, o maior fornecedor de petróleo para a China, que é o segundo maior mercado de crude do mundo e já avançou para a possibilidade de vender o crude em yuans e não em dólares americanos. Isso vai contra a relação histórica que os sauditas têm com Washington desde 1945 e em especial a partir dos anos 70 do século passado quando decidiram vender o petróleo em dólares, passo seguido pela maioria dos países membros da OPEP.

O Futuro
As sanções à Rússia podem ser aplicadas a qualquer país que possua reservas internacionais soberanas no Ocidente, isso inclui países como a China, Turquia, Arábia Saudita e até a Índia, a maior democracia do mundo desde 1948, que já esteve sob sanções por causa do seu programa nuclear nos anos 90 do século passado, foi contra o uso de sanções e recusou votar contra a resolução da Assembleia Geral Das Nações Unidas que condenou a invasão russa. E nesta crise, a Índia foi mais longe, comprou petróleo russo durante o conflito ignorando os clamores ocidentais para se juntar as sanções.
O uso indiscriminado de sanções contra a Rússia, sem considerar os efeitos em países terceiros (em especial em países pobres e em vias de desenvolvimento), fez disparar os preços das principais commodities e vai ter um efeito inflacionista global e revela que o Ocidente não quis saber dos efeitos que as sanções terão no resto do globo. A nosso ver, isso vai acelerar uma bifurcação da globalização em eixos: uma globalização entre os países ocidentais e uma globalização entre o resto do globo, com enfoque nos BRIC.
A reconfiguração do sistema financeiro internacional vai inevitavelmente criar um sistema de pagamentos internacional que não passe pela hegemonia do dólar e pelos vários eixos, entre os quais o sistema de comunicação interbancária SWIFT.
A China é a grande beneficiária do conflito ucraniano e desta reconfiguração global de poder e vai acelerar a internacionalização do Yuan ou Renminbi como uma alternativa de moeda para pagamentos internacionais e eventual moeda âncora para as reservas internacionais de Bancos Centrais. Por exemplo, o comércio bilateral entre a Rússia e a China atinge o valor de cerca de 150 mil milhões de dólares e faz todo o sentido que isso seja feito em yuans ou parcialmente em rublos. Além de cortar o intermediário (o dólar americano), que é o sistema de pagamentos assente no mercado dos "eurodólares" (depósitos em dólares denominado em contas fora dos EUA), a utilização do yuan na relação bilateral Rússia-China permite uma acumulação de uma moeda que virtualmente não está sujeita à possibilidade de sanções e acima de tudo solidifica o eixo euroasiático, algo que não ocorria desde os anos 60 do século passado, altura em que Mao Tse-Tung rompe com a União Soviética. E nesta altura tanto a Rússia como a China há muito abandonaram as ineficiências da economia planificada e são economias de mercado plenas, a Rússia assente na exportação de matérias primas e a China na exportação de produtos industriais, o que significa que estão plenamente integradas na economia global, o que faz com que haja uma procura pelas suas moedas.
Um dos maiores especialistas em moedas, o economista Barry Eichengreen, já há muito tem apontado para um mundo de moedas internacionais concorrentes, a guerra na Ucrânia vai acelerar o processo, não só da internacionalização do Renminbi, mas da possibilidade do uso de moedas regionais.
Usar o dólar como arma geopolítica, por melhor intencionado que fosse (na tentativa de dissuadir a Rússia na invasão à Ucrânia), tem o efeito de acelerar o fim da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional, já que tudo é baseado na confiança que é abalada com esta crise.
Todos os países não-ocidentais relevantes vão começar a acumular reservas não baseadas no dólar e/ou no euro, já que podem ver sempre as suas reservas congeladas e mesmo que isso não se concretize, nenhum país vai querer ver essa possibilidade, e a principal moeda que se vai beneficiar desse movimento é o Renminbi ou o Yuan. O dólar não terá uma morte súbita, mas vai perder a importância que teve, não apenas pela desvalorização que teve nos últimos anos em virtude das rondas sucessivas de injecção monetária (o "Quantitative Easing") provocada pela "Federal Reserve" mas pelo fato de ser utilizado como arma contra potenciais adversários. Nenhum Estado relevante vai querer estar nessa situação onde as suas reservas podem ser congeladas a qualquer momento, ainda que por motivos "nobres". Para além disso vamos assistir a um maior uso de moedas descentralizadas digitais e sistemas de pagamentos alternativos como as criptomedas e isso vai reconfigurar completamente o sistema financeiro internacional.