Ano após ano, o país parece condenado a recomeçar a subida da sua pedra económica - a dívida e o défice - que invariavelmente rolam de volta, cada vez mais pesados, sobre o orçamento e sobre o povo. Assim, a metáfora clássica ressurge, não como mito distante, mas como diagnóstico político: Angola vive numa espécie de sisifismo económico, resultado de uma governação incapaz de transfigurar riqueza em sustentabilidade, de transformar activos em futuro, permanecendo prisioneira de uma repetição que não é destino divino, mas falência técnica e negação crónica da realidade.
A mais recente missão do Fundo Monetário Internacional (FMI), ao abrigo do Artigo IV de 2025, não deixa margem para ilusões: Angola encontra-se a viver perigosamente no "fio da navalha" da sustentabilidade das finanças públicas. Os sinais, longe de serem contraditórios, convergem com uma consistência quase exemplar. As próprias projecções oficiais do Executivo - sempre conhecidas pelo seu optimismo militante -, através do Ministério das Finanças (MINFIN), reconhecem que cerca de 59% do Orçamento Geral do Estado (OGE) se destina apenas ao serviço da dívida pública. A isso, acresce que a produção petrolífera nacional registou no 1.º semestre de 2025 um desvio de cerca de 10% abaixo da meta definida, enquanto o preço médio do barril de petróleo bruto no mercado internacional insiste em situar-se aquém das previsões inscritas no OGE.
Esta combinação, de natureza simultaneamente endógena e exógena, configura o que a literatura designa, sem rodeios, como uma clássica armadilha da dívida: os recursos futuros já se encontram hipotecados, e o presente, em consequência, perde qualquer capacidade de atrair investimento público ou privado. Aliás, segundo dados divulgados pelo Semanário Expansão, mais de 70% das obras do Programa de Investimento Público (PIP) permanecem paralisadas por falta de financiamento - um detalhe que, certamente, não consta dos discursos oficiais de celebração. Quanto ao investimento privado, este continua a tropeçar num sistema bancário que pratica políticas de crédito de severidade quase medieval, justificadas pela captura da gestão da dívida pública pelo sistema financeiro. Assim, onde se esperaria encontrar espaço fiscal para enfrentar o risco de colapso social, descobre-se apenas uma Equipa Económica (EE) a operar com margens microscópicas, transformando a governação num exercício de sobrevivência política - ou, dito de outro modo, numa arte de prolongar o inevitável.
Ora vejamos,
Com a assinatura da paz em 2002 e a bonança petrolífera do período 2004-2014, Angola viveu um crescimento económico de dois dígitos que alimentou a confortável ilusão de uma riqueza inesgotável. O país acreditou-se detentor de um destino grandioso, traduzido num despesismo quase litúrgico: pavilhões e estádios de futebol erguidos à pressa que hoje sobrevivem entre o vazio e a ruína, satélites lançados para uma órbita algures no além, aeroportos sem aviões, etc. A projecção simbólica do poder ia ainda mais longe: desfiles pela Avenida da Liberdade em Lisboa, passeios triunfais pela Avenida Paulista em São Paulo ou compras em Sandton City, Joanesburgo, como se a nação tivesse alcançado, enfim, o estatuto de "donos do mundo". Só faltou mesmo um pormenor - ocupar lugar de destaque entre as melhores academias internacionais, onde, ao contrário de certos rankings, o dinheiro não compra prestígio: exige mérito, trabalho e consistência intelectual. Todavia, a queda abrupta do preço do petróleo em 2014 expôs a nudez desta ilusão.
Em 2018, Angola recorreu ao FMI com promessas de reformas estruturais. Contudo, a EE demonstrou incompetência e/ou impotência para tomar medidas disruptivas: adiou reformas, maquiou números e manteve políticas que perpetuaram o ciclo de endividamento. Onde se esperava coragem, houve apenas inércia, reforçando a pedra de Sísifo que cada ano cai de volta sobre o povo. Os indicadores macroeconómicos recentes sublinham a gravidade da situação. A dívida pública persiste em situar-se acima de 60% do PIB. Os encargos com o serviço da dívida tornaram-se particularmente onerosos: só em 2024, as despesas com juros representaram 31% das receitas fiscais e 4,65% do PIB, comprimindo a margem orçamental e limitando a capacidade do Estado em financiar políticas sociais e de apoio ao sector produtivo. A inflação de 28% em 2024 deteriorou significativamente o poder de compra da população. Paralelamente, o nível das reservas internacionais permanece insuficiente para garantir confiança junto dos mercados financeiros, que, em consequência, exigem taxas de juro progressivamente mais elevadas para financiar o Tesouro.
O défice primário não-petrolífero, estimado em cerca de -7% do PIB, em 2024, evidencia a dependência estrutural da economia em relação às receitas petrolíferas: sem elas, seria inviável assegurar mesmo as despesas essenciais. A este quadro acrescem choques adversos adicionais - produção e preços do petróleo bruto abaixo do previsto no OGE. Em termos técnicos, a combinação destes factores configura uma situação de elevado risco de insustentabilidade, aproximando o país de uma condição de falência técnica. A resposta, para ser eficaz, não poderá limitar-se a medidas conjunturais, mas exigirá uma intervenção imediata e estrutural na gestão macroeconómica, em particular na condução da política orçamental.
O quadro social revela-se igualmente alarmante. Nos últimos meses, Angola registou um surto de cólera que vitimou milhares de cidadãos, expondo a fragilidade estrutural do sistema nacional de saúde. O desemprego jovem alcançou níveis elevados, constituindo um dos principais catalisadores de manifestações em Luanda. Embora o aumento do preço da gasolina - consequência directa da necessidade de o Tesouro reduzir os encargos com o subsídio aos combustíveis - tenha funcionado como detonador imediato das manifestações, o descontentamento da juventude assenta em raízes bem mais profundas: a precariedade das oportunidades de emprego, a erosão do poder de compra, a exclusão social e a percepção de ausência de perspectivas de futuro.
Trata-se, pois, de uma situação previsível e em larga medida evitável, caso a EE do Executivo liderado pelo Presidente João Lourenço tivesse demonstrado a necessária coragem política e a capacidade técnica para adequar as políticas públicas às exigências do actual quadro macroeconómico. Onde se reclamava uma estratégia de política económica e social responsável, a resposta da EE mostrou-se insuficiente, incapaz de proteger os cidadãos mais vulneráveis e de travar a degradação do tecido social e produtivo.
Portugal oferece uma lição clara. Em 2011, perante crise de dívida soberana insustentável e perda de acesso aos mercados, o então Primeiro-ministro José Sócrates tomou a difícil decisão de pedir ajuda externa. Perdeu eleições seguintes, é certo, mas Portugal salvou-se. Hoje, desfruta de estabilidade social e económica, financia-se a custos razoáveis e recuperou reputação internacional. Onde Sócrates demonstrou coragem, Angola insiste em negar a realidade, prolongando sofrimento do povo.
A solução, do ponto de vista económico, é clara: impor uma moratória sobre a dívida, seguida de um processo de reestruturação devidamente negociado. Não se trata de um caminho isento de custos - haverá penalizações reputacionais e, inevitavelmente, os mercados financeiros internacionais encerrarão temporariamente o acesso ao financiamento. Mas a questão central permanece: qual é a alternativa? Permitir a continuação da falência das empresas nacionais, deixar hospitais desprovidos de medicamentos, as escolas a sorte dos Deuses, condenar os jovens a um futuro bloqueado e assistir, de forma passiva, à deterioração das condições mínimas de subsistência da população? Pasme-se!
Se a política tem alguma racionalidade, esta deve residir na preservação do país e do seu capital humano, e não na obsessão em manter uma fachada de solvência que apenas agrava a insolvência real. O apelo, portanto, é directo e inadiável: Camaradas, salvem Angola. Onde ainda existe esperança, há também margem para renegociar, libertar recursos e proteger os cidadãos mais vulneráveis. O país não pode permanecer eternamente prisioneiro do mito de Sísifo, empurrando a pedra da dívida montanha acima enquanto o povo desce em agonia. É tempo de evitar que a pedra role de vez e esmague o que resta da nação.
Como afirmou Winston Churchill (1874 - 1965), antigo Primeiro-ministro britânico, "Para cada um, chega um momento especial na sua vida em que são figurativamente tocados no ombro e lhes é oferecida a oportunidade de fazer uma coisa muito especial." Talvez este seja, para Angola e os seus líderes, o momento: o instante em que a coragem política e a visão histórica podem romper com a lógica de sobrevivência imediata e inaugurar uma verdadeira estratégia de futuro. A oportunidade existe - e ignorá-la seria desperdiçar não apenas uma ocasião rara, mas a própria possibilidade de resgatar uma nação inteira da sua deriva.n
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
Bibliografia
• International Monetary Fund. African Department (2025). Angola: Article IV Consultation-Press Release.
Article IV Consultation-Press Release.