Voltei a andar de candongueiro por vontade própria e, durante algumas horas, tudo para voltar a sentir a memória dos tempos em que esse era o meu meio de transporte diário e habitual. É uma viagem no presente que nos coloca, muitas vezes, entre um passado falsificado e um futuro cego, em que não nos vemos. Estamos perante um presente que não nos deixa estar presentes. Parece um paradoxo, pois estamos ali no candongueiro, mas não estamos, porque o nosso pensamento, os sentimentos e as ideias não estão lá. É como olhar para a história das nossas vidas por uma janela que não nos pertence e em que cada paragem revela um destino diferente. É uma viagem mundana, sem títulos nem privilégios. Uma viagem em que deambulamos pelos rostos e olhares, pois, neste caso, viajar implica sempre uma dupla deslocação. Uma viagem entre a fé e a descrença, entre a obediência e a rebeldia, entre o ser e o não ser. Uma viagem reveladora e esclarecedora. Uma viagem em que andamos em busca de um futuro, visto que nos faz falta um passado.

Seguimos viagem nesta democracia em movimento que ouvimos elogios, reclamações, preocupações e frustrações. Uma democracia em movimento que nos faz olhar, desfrutar das paisagens e as paragens. Uma viagem que acontece num presente que já não nos pertence, vindos de um passado que nunca foi nosso, rumo a um futuro que envelheceu antes de nascer. É uma viagem de seres plurais e imprevisíveis. Uma viagem em democracia, num movimento livre, sem hierarquias e sem uma ordem propriamente estabelecida. Uma viagem que nos coloca perante uma realidade que choca e afronta. Uma realidade que nos coloca perante um crise existencial, pois já não somos aquilo que fomos. E não sei se um dia seremos aquilo que hoje queremos.

Uma viagem em que todos têm opinião sobre tudo, em que a conversa entre o motorista e o cobrador pode ser o mote para uma acesa discussão, em que os debates radiofónicos e programas de entretenimento provocam interessantes estados de opinião e de alma. Mas também há quem siga viagem em modo de distância invertida. Para estes, a fala é reduzida ao grau zero e há uma inactividade física que contrasta com uma intensa hiperactividade virtual. É o isolamento da realidade material que contraria a natureza humana e que faz que sejamos convocados a elaborar uma interpretação sobre a existência destas novas entidades da vida real, mas que vivem no domínio do virtual. Há aqui uma prerrogativa humana que nos vai sendo imposta.Estes são os passageiros que fazem a viagem num silêncio real, mas num intenso "barulho virtual".

Enquanto isso, o candongueiro segue a sua marcha. Descubro que a estudante é namorada do advogado, que o artista foi aluno do professor e que o trabalhador da construção civil está de olho na empregada doméstica. Tudo numa verdadeira democracia de afectos e sentimentos. Há uns anos que não me metia dentro de um candongueiro e vivia viagens tão interessantes e reveladoras. Há sempre alguém que nos topa, se estranha como se achasse que estivemos perdidos ou por engano no candongueiro. Há sempre alguém que questiona a nossa presença ali e quem até pede para fazer uma selfie. Afinal, estamos em democracia e numa democracia em movimento.