Sucede que Amílcar Cabral morreu assassinado em Conacri a 20 de Janeiro de 1973, tinha apenas 49 anos, mas Mário Soares viveria até aos 93 anos, tendo falecido a 7 de Janeiro de 2017.
A dimensão política e cultural de ambos conduziu a que a evocação da passagem dos respectivos centenários de nascimento justificasse merecidas e justas homenagens.
No caso de Amílcar Cabral, promovidas pela Fundação com o seu nome, presidida pelo seu camarada de partido Pedro Pires que a levará a dez países e, no caso de Mário Soares, sob o impulso também da Fundação com o seu nome a outros tantos países, particularmente europeus.
Assinalo a propósito que a União Europeia tem uma sala de trabalho com o nome de Mário Soares, tendo Amílcar Cabral estudado em Lisboa agronomia no Instituto Superior de Agronomia, onde se licenciou, exercendo, desde logo, actividade profissional em Portugal, mas também na Guiné-Bissau, Cabo Verde e Angola.
Neste último país, Angola, não deixaria de ter um papel relevante nas actividades políticas de solidariedade com a independência do país.
Em Portugal, Amílcar Cabral foi um activo militante como associado da Casa dos Estudantes do Império, instituição que viria a ser encerrada pela PIDE, a polícia política de então, pelos contributos de luta que os então estudantes universitários deram para a independência dos territórios que eram originários.
A Casa dos Estudantes do Império é o tema do romance de Pepetela, "A Geração da Utopia" que motivou a atribuição do maior galardão de literatura de língua portuguesa em Portugal, o prémio Camões.
Do mesmo passo, Mário Soares, encetou muito cedo a sua actividade política contra o regime colonial português, tendo privado praticamente com todos os líderes dos movimentos de libertação e essa acção conduziu-o a doze prisões, um exílio em São Tomé e Príncipe e uma deportação em França, onde se encontrava quando ocorreu a Revolução de 25 de Abril, em Portugal.
Para se entender a vida atribulada e de persistente combate de um e de outro, é necessário termos presente que, em Portugal, o regime ditatorial vigorou durante 50 anos, oprimindo os povos das ex-colónias, mas também o povo português.
No plano internacional, o que prevalecia era o conflito entre duas superpotências, os E.U.A. e a ex-URSS, com a Guerra Fria na Europa e uma outra, esta quente em África.
Foi, assim, natural que o relacionamento de Mário Soares e Amílcar Cabral se mantivesse no exterior, sempre que possível, quando Mário Soares, se encontrava exilado em França.
A partir da audiência que o Papa Paulo VI concedeu a três dos dirigentes da luta anticolonial em 1 de Junho de 1970 no Vaticano a Amílcar Cabral, da Guiné-Bissau, António Agostinho Neto, de Angola, e Marcelino dos Santos, de Moçambique, a repercussão internacional do que se passava nos teatros de operações nas ex-colónias portuguesas ganharam muito maior dimensão.
Daí a divulgação de situações impossíveis de calar como a que se passou no massacre de Wiriyamu, no Norte de Moçambique em 1972.
O massacre ainda foi do conhecimento de Amílcar Cabral, mas não já a declaração de independência da Guiné-Bissau, sob a égide do seu irmão Luís Cabral.
Foi, assim, natural que o Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, agraciou postumamente Amílcar Cabral e Mário Soares com duas das mais altas condecorações honoríficas portuguesas pela passagem do centenário de ambos.
Por ocasião da passagem dos 50.º aniversários das independências de países de língua oficial portuguesa, não podíamos deixar de evocar estas duas personalidades que são incontornáveis na luta sem desfalecimentos pelo direito à autodeterminação dos povos.
No que a Mário Soares diz respeito, não posso deixar ainda de ter presente que a última viagem que fez ao exterior como Presidente da República de Portugal foi a Angola, em Janeiro de 1996, sob a Presidência de José Eduardo dos Santos e, tendo como Embaixador de Angola em Portugal o Dr. José Patrício.
Vivi directa e pessoalmente os preparativos dessa viagem e integrei a comitiva, não deixando de dar um apertado abraço ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola, meu velho amigo Venâncio Moura logo no Aeroporto 4 de Fevereiro.
Essa viagem em que se já vislumbrava que tarde ou cedo a guerra terminaria, estando em curso passos para a reconciliação nacional, justifica acrescidamente o presente artigo de dois homens invulgares da paz que foram determinados na luta contra ventos e marés pelas causas em que acreditaram.
Nunca o fizeram pelo poder ou para apenas para o conservarem.
Merecem ser lembrados como personalidade de causas.

*(ex-Secretário-geral da UCCLA)