Nascido para divulgar nas frentes de combate e em unidades militares os feitos do desporto militar, de modo a proporcionar algum alento à tropa, cedo o JDM se desviou da sua essência. Com a maior das naturalidades, o jornal foi "compelido" a alargar o campo de actuação, saindo do "aquartelamento" para abraçar toda a "Sociedade Desportiva", ou seja, enquanto único título desportivo do País, não tinha como ignorar a "outra metade" do desporto nacional.
Isto é compreensível, na medida em que o desporto militar, com o 1.º de Agosto à cabeça, tudo dominava. Decalcado do Leste europeu, onde estavam os chamados países socialistas, com os quais Angola tinha relações privilegiadas e onde copiara o arquétipo de desenvolvimento sócio-ecomómico, o modelo desportivo angolano tinha no desporto militar um pilar estruturante. De modo tal que, em várias competições, sobretudo em Luanda, participavam equipas das Missões Militares de Cuba e da União Soviética. Para que conste, havia uma agremiação desportiva de nome Moncada, que participava em provas oficiais de basquetebol, andebol e voleibol...
Além do 1.º de Agosto, havia o Dínamo de Angola (com clubes em quase todas as provinciais), o Interclube (da Polícia Nacional), o GD 13 de Setembro (da Organização de Defesa Popular - ODP) e outras designações menores de raiz militar ou paramilitar. À época, num país militarizado e em guerra, era absolutamente natural que assim fosse.
Só que esses emblemas não competiam apenas entre si. Sendo partícipes de todas as competições, tinham de medir forças em provas oficiais com clubes "civis". Logo, o JDM tinha de dar cobertura a esses eventos e, naturalmente, deixou de ser um jornal de carácter exclusivamente militar, apesar de órgão oficial do Comité Desportivo Nacional Militar (CODENM), uma superfederação que administrava as competições castrenses.
Dirigido pelo ex-futebolista e jornalista Ângelo Silva, o JDM elevou-se à condição de órgão supra do desporto angolano, uma espécie de A Bola de Angola. E dado o profissionalismo dos seus quadros, da primeira à última geração, apesar de ter como director alguém ligado ao CD 1.º de Agosto, jamais foi parcial favorecendo o "rubro-negro" ou quem quer que fosse. É verdade que havia adeptos "agostinos" na redacção, o que é perfeitamente entendível, visto que antes de jornalistas as pessoas são amantes do desporto, onde criam geralmente laços de afectividade. Mas havia também "sambilas" e "tricolores", mas nunca houve favorecimento. Aliás, arrisco dizer que havia menos paciência para com o 1.º de Agosto, que muitas vezes levava por tabela quando alguém quisesse zurzir no sistema político.
Nascido num cenário mediático impresso de pobreza quase absoluta - então só havia o Jornal de Angola e a revista Novembro - e um controlo cerrado, o JDM alçou-se à condição de referência na luta pela liberdade de expressão em Angola. Provavelmente será exagerado afirmar que o jornal foi o farol dessa luta, na I República. Mas o seu contributo foi inegável, sendo uma tribuna a partir da qual muitas vezes se criticava de forma velada (algumas vezes de modo incisivo) o sistema político que pariu a economia centralizada de inspiração socialista.
Lembro-me, particularmente, de um episódio curioso ocorrido em 1982 e que demonstra bem a sagacidade crítica de alguns jornalistas do JDM. Três meses após o surgimento do jornal, Angola participava no seu primeiro "Mundial" de seniores, no caso com a Selecção Nacional de hóquei em patins, em Barcelos e Lisboa (Portugal). Na segunda jornada desse campeonato, Angola defrontou a Itália. À época, a nação transalpina não só tinha o melhor campeonato de futebol de todo o mundo como também tinha o melhor campeonato de hóquei em patins do planeta. Com invejável músculo financeiro, a Liga transalpina convocava os melhores jogadores dos quatro cantos da terra. Mais: a Itália tinha nas suas fileiras aquele que era dos melhores jogadores do mundo, de nome de Giuseppe "Pino" Marzella.
Ninguém sabe como, mas Angola arrancou uma jogatana fabulosa e, ao cabo do primeiro tempo, vencia por 5-0 (!) a grande Itália, então páreo da Espanha e Portugal no topo do ranking mundial. Era um resultado impensável e que sequer constava do melhor dos sonhos dos angolanos, nem mesmo dos mais optimistas. O Mundo do hóquei em patins estava momentaneamente em choque, surpreendido e boquiaberto com meio-escândalo que estava a acontecer. Era simplesmente espantoso como uma selecção africana, que participava pela primeira vez num "Mundial", ousava estar à frente da Itália por números tão convincentemente redondos!
Na segunda parte, a experiência dos italianos veio ao de cima e Marzella, Girardelli, Beltempo e companheiros deram a volta por cima, evitando o que seria o maior "escândalo" do hóquei em patins mundial. No final do desafio, vitória suadíssima da Itália por 7-6, numa partida épica em que o universo da modalidade ficou a saber que existe uma Angola com uma palava a dizer no desporto sobre rodas.
No rescaldo dessa jornada quase gloriosa, na pena do então chefe-de-redacção, Gustavo Costa, o JDM titulou do seguinte modo: "Equipa alimentada a carapau teve arroto à bife". Aqueles eram tempos de carência de tudo, mas sobretudo de alimentos, e o abastecimento era racionado através de um cartão afim. De um modo geral à mesa dos angolanos chegava apenas peixe congelado, quase invariavelmente carapau ou espada, esta já sem a competente cabeça, o que lhe valeu o apodo de cinturão das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), o exército da época em que o MPLA governava sem mandato popular sufragado nas urnas. Então, ter carne à mesa era um luxo para alguns poucos "eleitos" e mesmo os ditos responsáveis (ministros, directores nacionais e outros funcionários da alta hierarquia do Estado) só tinham direito a dois quilos de carne por semana. Carne é como quem diz... pois podia ser fígado de vaca, bofo, dois frangos ou apenas dobrada!
O título foi interpretado como sendo uma crítica à economia planificada. E foi de facto, embora artificiosa. Por isso, não tardou a chegar à redacção do JDM uma carta-ralhete assinada pelo então todo-poderoso chefe da Esfera Ideológica do "partido" a censurar o "diversionismo ideológico" que o título representava e a apelar à "pureza ideológica" do jornalista.
E aconteceram muitos mais episódios em que as autoridades se indispuseram grandemente.