É óbvio que o facto de em determinado idioma não existir o significante de uma palavra, não quer dizer que o significado inexista. Duvidamos que a palavra átomo, por exemplo, figure em dicionários de línguas nativas africanas. Mas não é por isso que o átomo, enquanto partícula-base criadora de toda a matéria, deixa de existir. Logo, a corrupção existe no "continente negro" e, infelizmente, é um mal endémico em muitos países africanos. Provavelmente, o Presidente Omar Bongo queria sublimar o valor da gratidão nas sociedades africanas.
Efectivamente, as sociedades africanas apreciam imenso a gratidão. E Angola já foi assim. De sorte que era bastante comum, principalmente no interior, após o ano lectivo, o encarregado de educação oferecer uma galinha ou um cabrito ao professor do filho por ter dedicado o seu tempo a legar conhecimento ao descendente. Também não era raro um paciente oferecer algo significativo ou apenas simbólico a um médico que lhe tenha salvado a vida. Era assim, mas os valores inverteram-se e hoje, em regra, as "ofertas" são entregues com antecedência, deixando de ser gratificação para ser corrupção.
Vem isto a propósito da situação de Akwá, o cidadão angolano que continua suspenso pela Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA), devido a uma dívida com o último clube que representou, o Qatar SC. Por força do castigo, o antigo internacional pelas "Palancas Negras" está impedido de fazer parte de um mundo que é "seu", o Mundo do Futebol. Não pode ser dirigente, não pode ser treinador... não pode nada no futebol, o que é um desperdício, pois o capital de experiência acumulado ao longo de uma trajectória brilhante deveria ser posto ao serviço do futebol nacional, que tanto precisa de aportes, tão mal está das pernas.
Sobre o assunto já muito se escreveu e se falou. Na troca de argumentos houve quem dissesse que, tendo Akwá sido bem remunerado nos clubes por que passou, podia muito resolver o assunto com recursos próprios por ser ele o único culpado da situação. Há não muito tempo, o antigo secretário-geral da Federação Angolana de Futebol (FAF) apresentou, nas redes sociais, a sua versão sobre o tema e o essencial da explanação feita é que o órgão-reitor da "bola doméstica" nada deve a antigo "capitão" da Selecção Nacional de futebol.
O que todo o mundo do dirigismo desportivo omite, seguramente por cobardia, é que, por ocasião do CAN"2010 em Angola, havia ordens verbais expressas do general Ndalu, para que se resolvesse a situação. A ordem foi dada no âmbito do célebre "Estado Maior" do CAN, que usurpou as competências da FAF para tratar da preparação da Selecção Nacional. Essa estrutura ad-hoc tinha disponíveis qualquer coisa como USD 15 milhões para o apronto. É desse montante que sairiam "míseros" USD 300 mil para o pagamento da dívida de Akwá. Sobre esta dinheirama não há notícia de contas prestadas. Os contribuintes ignoram como o dinheiro, que circulou fora dos corredores do Orçamento Geral do Estado (OGE), foi gasto. O que muitos sabem é que gente envolvida na organização do CAN"10 saiu com as algibeiras abarrotadas. Houve o caso de um dirigente que entrou na FAF com um minúsculo automóvel a cair aos pedaços, com quatro pneus diferentes, e saiu de lá com um Audi Q7, cuja versão mais barata custava a "ninharia" de euro 93.500,00, algo em torno de USD 100 mil.
As leis do jogo de futebol são formalmente 17. Mas a "tribo do futebol" acrescentou uma: a Lei do Bom Senso, para ser usada nos momentos mais complicados. É esta "cláusula" que parece ser suprimida propositadamente quando se toca no assunto. A deselegância e o desrespeito com que Akwá é tratado, nem parece que os seus golos deram a ganhar muito dinheiro a dirigentes do futebol. Um avião da TAAG que transportou da Alemanha para Angola parte da "multidão" que esteve no "Mundial"2006", na Alemanha, tinha três luxuosos automóveis de marca Mercedes no porão. Eram de dirigentes do futebol angolano. A farra feita com dinheiro público permitiu também à "arraia-miúda" embolsar tanto, que se permitiu ao luxo de comprar frotas de Hiaces na Bélgica... Todos mamaram fartamente. Até as migalhas que caíam aqui e acolá deram para resolver problemas prementes da criadagem que acompanhou à "corte" à Alemanha!
A patuscada em terras germânicas só foi possível porque Akwá marcou o golo da qualificação mundialista. É este mesmo Akwá a quem parte do país agora vira costas. É verdade a la palisse que ele não foi o único "herói" de Kigali. Mas ninguém pode apagar aquele golo determinante na partida com o Ruanda. É imperecível, por mais esforço que alguns desmemoriados fingidos façam em sentido contrário.
Akwá, indubitavelmente figura maior das "Palancas Negras", pode ter falhado. É tão humano quanto dirigentes que antes se acotovelavam para ter a atenção dele e agora o tratam como um pária. E mesmo sendo culpado em toda esta estória, merecia ser tratado com decoro. Quanto mais não seja por dívida de gratidão por tudo o que ele fez pelo país. É aqui onde a aplicação da Lei do Bom Senso se devia fazer sentir. Afinal, de uma forma ou de outra, devemos momentos de suprema alegria ao "capitão".
O que parece estar a acontecer é falta de vontade política de resolver a questão. Aparentemente, o problema não é tão complicado quanto isso. E mesmo que a Federação ou outra entidade afim não tenham dinheiro para o efeito, fazia-se necessária uma abordagem vis-a-vis com dirigentes do emblema catari, a fim de pedir o perdão da dívida ou renegociá-la. Assim, reabilitaríamos um importante activo do futebol nacional. Afinal, para o Qatar SC USD 300 mil é dinheiro para comprar jinguba, tão rico é o clube. O que está em jogo é a forma incorrecta (na perspectiva do empregador) como Akwá terá procedido. E na cultura árabe o humilde pedido de desculpas é algo bastante apreciado.
Em tudo isto, é estranho que a Benguela de Akwá se mantenha queda e muda diante de tanta sacanagem. Custa acreditar que é a "mesma" Benguela, de seculares tradições de luta contra injustiças, que em 2002 se levantou em defesa da Miss Giovana Pinto Leite e fez o mesmo em 1993 para "defender" o xadrezista Nelson Ferreira no célebre "match" com o MI Manuel Mateus. Akwá não merece isso. Pelo que fez, merece uma estátua, pois em campo foi o equivalente do genial Ernesto Lara Filho, celebrado escritor da vetusta urbe de São Filipe.