Para Manino Costa "o Kudibangela surge, numa primeira fase, para difundir a essência do trabalho que vinha sendo levado a cabo pelas Comissões Populares de Bairro (CPBs) e as Brigadas Populares de Vigilância (BPVs), no âmbito de uma estratégia que visava enaltecer e potenciar a imagem do MPLA no confronto político e ideológico com os outros dois movimentos que eram a FNLA e a UNITA. Essa era a realidade da época."
Manino Costa tem bem presente na sua memória que "no dia 4 de Dezembro de 1974, pelas 07H30, foi para o ar a primeira emissão do Kudibangela, integrando a grelha de Programas da então Emissora Oficial de Angola (EOA), cujo controlo, entretanto, era já exercido remontamente pelo MPLA, face à apatia e desmotivação evidenciados pelos representantes da administração colonial portuguesa, ansiosos de ver chegado o tempo de arrumar as malas e zarpar, parafraseando Zeca Afonso.
O programa foi uma ideia concebida pelo Adelino dos Santos (Betinho) que a transmitiu ao Manuel Neto (MBala).
Por razões sobejamente conhecidas, existiam fortes laços de amizade e cumplicidade entre eles e o Juca Valentim e o Nado, dentre outros, que na altura respondiam pelo DIP do CC do MPLA em Luanda.
Foi daí, com este beneplácito, que surgiu então a possibilidade de franquearmos as portas da programação da EOA, hoje RNA".
O nosso interlocutor recorda-se que o Programa havia sido baptizado (pelo Betinho) inicialmente com o nome de "Construção", durante o escasso tempo que antecedeu a sua primeira emissão, mas tão-logo se constatou que esse título não tinha a abrangência que queríamos, ou seja, não era suficientemente impactante para a dimensão do propósito que se pretendia alcançar.
Alguém - de quem já não me recordo e não sei se algum dos meus correligionários ainda em vida se lembra - sugeriu o nome "Kudibangela", com uma explicação sucinta (mas convincente) do termo e aí tivemos a certeza de que aquele nome enquadrava-se na perfeição para o que pretendíamos.
Éramos uma equipa composta por MBala Neto, Adelino António dos Santos (Betinho), António Costa, Rui Malaquias, Benjamim Ngalangandja, Manino Costa, Evaristo Rocha, José António (Colosso) e a voz feminina da Ricardina Rocha.
O Ngalangandja ocupava-se exclusivamente da difusão do programa na língua nacional Umbundu.
Na sonoplastia, a Direcção da Rádio pôs à nossa disposição três técnicos, que connosco trabalharam nas distintas fases, a saber, Domingos Neves, Artur Arriscado e Óscar Pio Gourgel, qual deles evidenciando mais competência, maior criatividade, mais profissionalismo. Simplesmente fantásticos."
Manino Costa diz-nos que, "relativamente ao enquadramento de cada um de nós (e também dos sonoplastas), havia um denominador comum no grupo que era o facto de todos nós estarmos filiados ao MPLA.
Todavia, importa aqui destacar, o programa não deveria ser declaradamente partidário, não obstante aparecer como porta-voz (se assim posso considerar) das Comissões Populares de Bairro, particularmente do Sambizanga.
Aí, a tendência, a inclinação partidária do Kudibangela tornou-se inevitável, mesmo porque o momento e as circunstâncias em que ele aparece foram determinantes para a nossa indiscrição nesse quesito.
E convém observar que depois há sempre aquele período de "estudo mútuo".
No caso do programa, a relação transmissor/receptor foi muito determinante para o caminho exitoso que percorremos.
Fruto de uma selecção criteriosa dos temas em abordagem e de uma explanação directa e de fácil compreensão, o Kudibangela ganhou a simpatia e a preferência de gentes dos vários estratos sociais, com substancial predominância para as classes operária e camponesa.
Portanto, era um programa concebido à medida dos seus superiores interesses, uma poderosa arma ao serviço do proletariado, no qual - a julgar pelo volume da correspondência que passámos diariamente a receber - pudemos ter a certeza de que as massas trabalhadoras do País nele se reviam.
E pudemos, naquela altura, também constatar (sem vanglória) que, em determinadas ocasiões, a audiência do Kudibangela superava a do "Angola Combatente", deixando muitos pontos atrás o também concorrente "Povo em Armas" das FAPLA."
As makas com a direcção do MPLA
A parte mais substancial do depoimento do Manino Costa é dedicada ao relacionamento
da equipa do Kudibangela com a direcção do MPLA, trazendo-nos de volta todo o atribulado processo que conduziu à ruptura e ao consequente encerramento do programa.
"O Presidente Neto, regressado a Luanda no dia em que o Programa assinalava dois meses de emissão, constituiu-nos, a partir de uma recepção, precedida de jantar, de forma oficiosa, nos seus "olheiros", tendo-nos em várias ocasiões convidado para almoços ou jantares, ao longo dos quais se passavam em revista não só, a situação político-militar vigente, como também a credibilidade e o peso do MPLA no seio das populações, bem como a sua própria imagem (de Neto).
Vinte meses foi o espaço de tempo bruto que durou o programa, com duas intermitências pelo meio (de Agosto a Novembro/75 e de Abril a Agosto/76).
Em Agosto/75 recebíamos a primeira ordem de suspensão.
Neto convidou a equipa e num jantar no Palácio, servido pela então futura Primeira-Dama, esforçou-se por nos fazer valer o argumento de que o momento não era propriamente para acirrar ódios nem se enveredar (declaradamente) para a violência, pelo que o Kudibangela deveria deixar de ser emitido.
Aceitamos de bom grado a determinação dessa suspensão - que iríamos qualificar de pacífica - e que durou cerca de três meses, ao longo dos quais fomo-nos forjando e amadurecendo cada vez mais, na medida em que nos era possível dedicar mais tempo às actividades na Comissão Popular do Bairro.
Aquando da proclamação da Independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, o programa estava ainda suspenso, tendo retomado as emissões já nos derradeiros dias desse mês, culminando com o início da sua segunda etapa.
Estava em exercício já o 1.º Governo constituído da República Popular de Angola, através do qual os angolanos se reviam e pensavam País, pensavam Nação, pensavam Cidadão, pensavam, sobretudo, Angola.
E é assim que ao retomarmos as emissões do programa, paulatinamente, fomos ganhando consciência de que o Kudibangela, longe de ser um simples programa radiofónico a transmitir esperança e dar voz às massas populares que nele se reviam, era, sim, e acima de tudo, um projecto que, de forma alguma, estava dissociado da desafiante conjuntura sócio-política da então mais jovem Nação do mundo.
Começavam, entretanto, a divisar-se já no horizonte os contornos dos propósitos que os novos antagonistas defendiam para a jovem Nação Angolana.
Começavam a ganhar forma os mecanismos e argumentos esgrimidos pelos opositores ao sistema e regime que o MPLA defendia, para a transição harmoniosa do programa menor para o programa maior, definidos nos seus Estatutos.
Esses factores levaram-nos à introdução de alterações substanciais à linha editorial do programa o que, sem dúvida, viria a contribuir para alargar o leque de cidadãos a quem, cada vez mais, se tornou difícil agradar e contribuíram e determinaram a sua segunda suspensão.
Definitivamente e de forma assumida, demo-nos conta de que, ao guinarmos mais para à esquerda na linha editorial do programa, havíamos pisado em "areias movediças" e que muita gente se sentiu desalojada da sua zona de conforto.
A equipa não estava preocupada com isso e lançou, como slogan: "QUEM TEM MEDO DE KUDIBANGELA? A REVOLUÇÃO NÃO POUPA, NEM TOLERA REAÇAS!..." (corruptela do diminutivo de reaccionários).
Em resultado disso, uma nova ordem de suspensão foi determinada, desta feita, de um modo menos pacífico, mesmo porque pensávamos nós que gozávamos de uma certa protecção da parte de Neto, também porque, em consciência, o "passo à retaguarda" que estaríamos a dar, era tudo, menos voluntário.
Mesmo assim, apesar de termos as nossas vozes silenciadas, começaram as pressões acompanhadas até de ameaças de morte.
Chegámos, inclusive, a ser vítimas de actos de delinquência, um dos quais culminou com o roubo de minha viatura, que pernoitava no quintal do MBala.
Ainda como agravante, a correspondência que nos era agora dirigida passou a ter um conteúdo contrário, já não de apoio, não mais de incentivo e encorajamento, mas, sim, de ameaças e acusações.
Ficámos expostos e corríamos um sério risco de sucumbir sob "fogo amigo"...
Francamente, nenhum de nós estava preparado para enfrentar intimidações de tal envergadura.
Como resultado de conversações durante as quais prometemos e garantimos cedências, o quadro editorial do programa surge, na sua derradeira versão, de forma cada vez mais incisiva onde, em absoluto, foram postas de parte e votadas ao esquecimento as concessões que havíamos prometido.
A equipa sabia bem ao que se expunha, mas uma decisão estava já tomada que tinha a ver com o nosso compromisso irreversível na defesa dos ideais e da causa do proletariado.
E - qual Grito de Ipiranga - num determinado dia de Setembro de 1976 é lançado o repto: "SE O KUDIBANGELA ACABAR É PORQUE O FASCISMO ENTROU EM ANGOLA".
Foi esta a frase derradeira do também derradeiro programa que foi transmitido.
Naquele mesmo dia, a direcção da Rádio recebia uma notificação para vetar o acesso a qualquer elemento do Kudibangela às suas instalações.
Mas prevaleceu no ar, por algum tempo, uma pergunta que não se quis calar, proveniente da voz do povo: SERÁ QUE O FASCISMO ENTROU EM ANGOLA?"
*Jornalista