Na mesma altura em que se faz um grande barulho mediático porque já se efectuam cirurgias robóticas, uma criança perde a vida por falta de assistência médica e medicamentosa, por causa da irresponsabilidade de uns e a insensibilidade de outros. A Eduarda é filha do Sr. Albano, o pai, que partilhou nas redes sociais os áudios em que descrevia tudo quanto ele, a esposa, familiares e amigos fizeram para salvar esta criança. Mais uma vida perdida, dor incontida e nenhuma resposta vai ser capaz de trazer paz à vida deste casal, que nunca mais será como antes. A pequena Eduarda era o soro das suas vidas. Segundo relatos do pai, a criança foi mordida numa sexta-feira pelo cão de uma vizinha, por sinal, enfermeira de profissão. Quando a mãe levou a criança ao posto de saúde pública, creio que no sábado, ter-lhe-ão dito que tinham de ver o animal, vaciná-lo e só depois é que pegavam na menina. Entretanto, o pai, que havia estado num município próximo, regressa imediatamente e junta-se à família. Na segunda-feira, o casal vai com a criança até ao posto de saúde pública e, segundo o relato do progenitor, são confrontados com a seguinte informação: A unidade hospitalar não podia abrir ampolas para vacinar apenas uma criança, estas tinham de ser utilizadas para ao menos dez crianças. Tendo-lhes sido dito que regressassem na sexta-feira, até porque já havia orientado o mesmo para um grupo de familiares de três crianças que por lá haviam passado. É surreal, não é?

Ou seja, eles precisam de ter um número suficiente de crianças mordidas por cães para assim dar utilidade ao material disponível. É que isto não é comédia ou ficção, é mesmo um drama da vida real. De segunda até sexta-feira é uma eternidade para quem está no desespero e a ver uma filha em agonia. O casal decide procurar uma clínica privada e assim providenciar a assistência necessária para a sua filha. A factura apresentada é de 70 mil kwanzas e, por azar dos pecados, o multicaixa do pobre e desesperado pai não estava a funcionar. Tendo uma boa parte do dinheiro em cash, neste caso 50 mil kwanzas, o homem decide pedir o restante à vizinha, a tal dona do cão. Segundo ele, esta diz-lhe que não daria o dinheiro e que nem se responsabilizava pela solução adoptada. Era o seu entendimento que os pais da pequena Eduarda deviam esperar até sexta-feira para o tratamento na tal unidade de saúde pública. Estranho não? Tudo num verdadeiro manto de insensibilidades, irresponsabilidades e incapacidades que este País e algumas das suas gentes revelam. Por outro lado, mobilizaram-se familiares, amigos, redes sociais e muito mais, em busca de soro anti-rábico para salvar a criança. De Benguela para Luanda e não se conseguiu ter o tal "soro da vida" para a criança. Sou pai de uma menina de 6 anos. Ela é uma das razões da minha vida. Por ela vivo e dou a vida. É duro ver um pai a lutar para salvar a sua filha. É duro ver a sua impotência e incapacidade em proteger a filha. É duro ouvir o seu lamento. É mais duro ainda perceber que o buraco é mais fundo. Que andamos com as manias das grandezas e que são necessárias estas situações para revelar as nossas fraquezas, as nossas diferenças e indiferenças.

Depois de autorizar a ministra da Saúde a assinar um ajuste directo de 5,2 milhões de dólares, com uma fundação ligada à saúde, destinada à consultoria para a realização da cirurgia robótica e a formação dos quadros angolanos e uma subvenção com a mesma fundação que vale quase 22 milhões de dólares (ler aqui), o Presidente da República deu mais um passo para assegurar a cirurgia robótica em Angola ao assinar novo ajuste directo de 6 milhões de dólares para um consultor que coordenará todo o processo durante os próximos cinco anos. Qualquer coisa como 100 mil dólares/mês para o novo consultor (ler aqui).

Com 22 milhões de dólares, o plano estratégico de requalificação e apetrechamento, com garantia dos serviços de saúde primária, seria uma realidade, num período de pelo menos cinco anos. Mais de 70% da mortalidade no nosso País está associada à malária, gastroenterites, hipertensão e suas complicações (AVC, insuficiência renal), infecções respiratórias e HIV/Tuberculose.

Não temos subvenção do tratamento das principais causas de morte, à excepção dos anti-retrovirais e anti-tuberculosos. Não temos resposta para a prevenção e para a saúde primária. Estamos a apostar em menos de 1% de causa de mortalidade, com investimento em tecnologia caríssima. Uma médica amiga disse-me que, em saúde, os indicadores é que determinam as prioridades. Parece que estamos com as prioridades invertidas. Investimos milhões de dólares em cirurgias robóticas, mas não há soro anti-rábico para salvar a vida de cidadãos.

Investimos milhões nestas tecnologias, mas o mosquito continua a dominar o cenário e a malária estamos a "desconseguir" combater e erradicar. Sabem porquê? Porque é barato e a "micha" não compensa. A megalomania, a mania das grandezas é propositada, porque ela é proporcional à já instituída comissão, a apetecida "micha". E enquanto isso, vai-nos faltando os soros e continua havendo choros. E em Benguela há quem ainda chore pela pequena Eduarda.

Que a sua alma descanse em paz!