A leitura combinada do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2024, do Plano Anual de Endividamento (PAE) para 2024 e do artigo de opinião do Ministério das Finanças (MINFIN), publicado neste Jornal na sua última edição de 2023, leva-nos a questionar a credibilidade das medidas de política económica do Executivo. Se a esta leitura adicionarmos o comunicado sobre as decisões da última reunião do Comité de Política Monetária (CPM) do Banco Nacional de Angola (BNA) resulta então vincada a inconsistência (e irresponsabilidade) das diferentes medidas propostas pelo Executivo. De facto, ainda mais grave é a mensagem que o MINFIN pretende fazer passar à sociedade de que o OGE 2024 é sustentável, protege os rendimentos das famílias e apoia as empresas. No referido artigo, o MINFIN apresenta duas mentiras e uma meia-verdade.
Ora vejamos, a primeira mentira, talvez a mais grave, tem a ver com a pretendida sustentabilidade do OGE 2024. Neste ponto, o MINFIN não oferece nenhum elemento a fundamentar a sua afirmação, limitando-se a dizer que a elaboração do orçamento envolve a participação de vários stakeholders, tais como as diferentes unidades orçamentais, a Assembleia Nacional e a sociedade civil.
Ademais, alega que existe um procedimento de escrutínio e de fiscalização da execução e prestação de contas do OGE. Com essa argumentação só nos resta concluir que de duas uma: ou os responsáveis do MINFIN não sabem o que é sustentabilidade orçamental ou estão deliberadamente a induzir a opinião pública ao equívoco.
A verdade é que as duas hipóteses são manifesta e suficientemente graves para merecerem do Presidente João Lourenço e do MPLA uma verificação preventiva, sob pena de verem ruir a sua credibilidade junto da sociedade civil e dos potenciais (e escassos) investidores estrangeiros. Os resultados da investigação científica já demostraram ad nauseam que a credibilidade dos agentes responsáveis afecta de forma relevante a eficácia das medidas de política fiscal e monetária.
Sugerem, ademais, um comprometimento reforçado dos agentes privados com as premissas da política económica (de Barros et. al, 2021). Assim, consideramos contraproducente que membros do Governo promovam e disseminem informações erróneas e/ou enviesadas,
uma vez que agem de forma deletéria sobre as expectativas e, por esta via, contribuem para desacreditar as políticas do próprio Executivo.
Para aferir a sustentabilidade da política orçamental é preciso identificar as restrições que a economia enfrenta, e os riscos que lhes estão associados, contribuindo deste modo para a definição de um quadro de racionalidade das escolhas colectivas que devem presidir a formulação de qualquer programa político (Teodora Cardoso, 2014).
Assim, o MINFIN deveria demonstrar que as fontes de financiamento do OGE 2024 estão identificadas, asseguradas e a sua execução minimamente garantida.
Na edição deste jornal do dia 24 de Novembro de 2023 demonstramos que, entre outras coisas, o OGE 2024 tem um gap de financiamento à tesouraria no valor de 3 594,40 mil milhões de Kwanzas, aproximadamente 4,34 mil milhões de dólares americanos. Durante entrevista recente à TPA, os responsáveis do MIINFIN alegavam que iriam buscar crédito externo com prazos de financiamento superiores a 15 anos e com prazos de carência de, no mínimo, 5 anos para garantir uma trajectória prudente do endividamento externo. Ora, esta afirmação é simplesmente anedótica e irresponsável no actual contexto da economia internacional e dos mercados de capitais (dívida). Pasme-se!
A segunda mentira é a proposição de que o OGE 2024 protege os rendimentos das famílias porque, essencialmente: i) incrementa o salário dos funcionários públicos em 5%; ii) promove novas admissões de pessoal na administração pública; iii) aumenta a dotação orçamental do Fundo Nacional de Emprego em 10 mil milhões de Kwanzas; e que iv) amplia de 70 mil Kwanzas para 100 mil Kwanzas o limiar da isenção do imposto de rendimento de trabalho. Todas estas medidas são positivas e, na perspectiva do cidadão, só pecam por serem curtas (na perspectiva do seu encaixe quadro macro-fiscal a interpretação é mais complexa).
No entanto, os responsáveis do Executivo, que através do MINFIN subscrevem o artigo no Novo Jornal, têm um problema de matemática elementar. Estes incrementos e alívio tributário são engolidos pela galopante inflação esperada para 2024. Aliás, não se compreende como é possível afirmar que estas medidas vão proteger os rendimentos das famílias, quando o próprio OGE"2024 estima uma inflação esperada para o presente ano económico na ordem doa 15,6%.
Ademais, no passado dia 19 de Janeiro do corrente ano, em reunião do CPM, o BNA deliberou i) manter a taxa BNA em 18%, ii) manter a taxa de juro da facilidade permanente de cedência de liquidez em 18,5%, iii) manter a taxa de juro da facilidade permanente de absorção de liquidez em 17,5% e iv) aumentar o coeficiente das reservas obrigatórias em moeda nacional para 20%. Com estas medidas, o BNA assume o risco do cumprimento da meta de inflação esperada e da taxa de crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) para 2024, definida no quadro macroeconómico que fundamentou a elaboração do OGE"2024. Assim, é totalmente falso que os rendimentos das famílias estejam protegidos. Consideramos esta uma afirmação temerária (quiçá até mesmo kamikaze) face à enorme incerteza que circunscreve todo o cenário económico nacional e internacional.
No entanto, o OGE"2024 traz uma meia-verdade que merece ser assinalada: a prioridade em investir mais na economia e nas empresas. O OGE preconiza o pagamento de atrasados no valor de 238 mil milhões de Kwanzas, a capitalização dos veículos de financiamento público à economia no valor de 147,26 mil milhões de Kwanzas e a reserva de 330 mil milhões de Kwanzas para prestação de garantias soberanas.
De facto, é visível (verdade) que há uma mudança no discurso do Executivo, no que se refere às medidas para estimular e dinamizar a economia e as empresas nacionais. Outrossim, consideramos acertada a aposta na capitalização dos veículos públicos de financiamento à economia, nomeadamente o Banco de Desenvolvimento de Angola (BDA), o Fundo de Garantia de Crédito (FGC) e o Fundo de Capital de Risco Angola (FACRA) para promover o apoio às empresas nacionais.
É inquestionável que os bancos comerciais, em Angola, estão predominantemente focados naquelas actividades bancárias que maximizam a rentabilidade dos seus capitais próprios (ROE) e dos seus activos (ROA) em detrimento da concessão de crédito à economia.
No entanto, a execução desta estratégia está assente numa incerteza devido a dois factores condicionantes e restritivos. Primeiro, a falta de sustentabilidade do próprio OGE"2024, conforme descrito no nosso artigo do dia 24 de Novembro de 2023, e sumariamente exposto nos parágrafos acima, leva-nos a concluir que estes apoios não estão de todo assegurados. Pelo contrário, com os dados macroeconómicos à nossa disposição, parece-nos pouco crível que estes apoios se venham a concretizar, uma vez que os riscos inerentes à execução fiscal são significativos e que as medidas propostas para os mitigar são manifestamente inconsistentes.
Em segundo lugar, persistem os erros e os vícios do passado no que tange à definição de uma política de diversificação e aumento da produção. O Executivo tem de ser mais selectivo na definição dos sectores e segmentos sectoriais que pretende apoiar. O Estado não pode andar entretido a apoiar todos e quaisquer projectos, e em qualquer sector. É preciso focar naqueles sectores onde existam vantagens comparativas e que maximizem as externalidades positivas a curto e médio prazos. Por outras palavras, é preciso rever os limites discricionários destes organismos públicos, bem como reforçar a formação dos agentes públicos encarregues de formular e aplicar critérios racionais na concessão de incentivos sectoriais.
Por exemplo, não é coerente que o BDA financie a construção e implementação de uma fábrica de lentes oftálmicas orçada em 8,8 milhões de Euros, valores estes que podiam ser canalizadas para apoiar mais projectos nos sectores da agricultura, da indústria transformadora alimentar e das pescas. Evidentemente, as vantagens comparativas e as externalidades positivas deste projecto são bastantes questionáveis. Por outra, a importação de matéria-prima para o funcionamento desta fábrica vai acabar por pressionar ainda mais a balança de pagamentos do País.
Quer o Fundo Monetário Internacional (FMI), quer vários estudos académicos demonstram que a rigorosa gestão das finanças públicas nos países em desenvolvimento produtores de petróleo é crucial para o crescimento económico sustentável. Aliás, está consagrado na literatura económica que estes países terão de se adaptar à nova realidade de declínio da produção e de alta volatilidade dos preços do petróleo no mercado internacional, para colmatar os desafios na gestão das finanças públicas e da balança de pagamentos (Venables, 2016).
Assim, é imperativo que a equipa económica do Presidente João Lourenço dedique maior atenção ao equilíbrio das finanças públicas, principalmente num contexto em que o espaço fiscal para lidar com eventuais choques externos é bastante limitado.
Neste momento vale recordar a frase do prêmio Nobel da Economia de 2008, Paul Krugman, quando comentava sobre os desafios das economias do sul da Europa entre os anos de 2008 e 2011: "só há uma pequena margem para deslizes orçamentais". ¦
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG Bibliografia
- Anthony J. Venables (2016), Using Natural Resources for Development: Why Has It Proven So Difficult? The Journal of Economic Perspectives, Vol. 30, No. 1 pp. 161-183.
- de Barros Filho, Luciano Cardoso; Azevedo Côrtes, Claudia; Maria Nocko, Larissa (2021), Cadernos de Finanças Públicas, Vol 21, Issue 1, p1.
- Teodora Cardoso (2014), Sustentabilidade orçamental: conceito, práticas e ideias, Apresentação às Jornadas Parlamentares do PSD.