Num país como o nosso, no qual os políticos adoram andar de cócoras, a tendência é para se exaltar a subserviência social e proteger aqueles que têm o dom de estar na vida sem coluna vertebral.
Num país como o nosso, que cultiva o seguidismo material, a tendência dita que se ignore a grandeza de carácter dos homens simples, mas plenos de honradez. Um desses homens era José Luís Gaspar Cohen.
Não fazia parte da minha geração, mas soube incorporar-me na sua geração, e, ao mesmo tempo, integrar-se na minha geração. Nos últimos (quase) quarenta anos, irmanados por uma amizade fecunda, acabamos por fazer parte da mesma geração.
Tudo se desmoronou, porém, na quinta-feira da semana passada, quando, traiçoeiramente, decidiste apunhalar-nos pelas costas, deixando a família desolada e os amigos inconsolavelmente abandonados.
Com a sua partida, o Fernando Pereira, amigo do tempo do dirigismo desportivo, foi ao baú da sua biblioteca e lembrou-se de uma frase de Mário de Carvalho, um dos melhores dos menos conhecidos escritores portugueses.
Lembrou-se o Fernando que Mário de Carvalho, revoltado, disse há tempos isto: "Que raio de brincadeira estúpida arranjaram os do meu tempo, andam todos a morrer".
A tua morte Zeca Cohen, é mais um vazio que fica na vida de tanta gente que conhecemos, e de uns poucos de quem gostamos, o que não é exatamente o mesmo.
Tu não eras um dos muitos que conhecemos, mas eras um dos poucos de quem gostávamos. Gostávamos de ti porque soubeste amar a vida.
E como bem disseram as tuas queridas filhas - Bibila e Claúdia - na hora da partida, "quando se ama a vida, vive-se com alegria e com amor. Neste sentido existe um início, um meio e um fim".
Partiste, mas sobre a tua querida esposa, a Néne, os teus filhos e netos continuas a lançar o teu olhar sorridente, o teu bom humor e a tua boa gargalhada.
É difícil de aceitar, mas a grandeza do teu percurso como homem de bom carácter, chefe de família irrepreensível e amigo ímpar dos seus amigos, chegou ao fim.
Destroçados, os teus amigos sentem-se reduzidos a uma espécie de farrapo humano e ainda não acreditam no teu desaparecimento.
Sim, Zeca, é difícil acreditar que já não temos à nossa volta o homem bom que sempre foste e soube cultivar as melhores amizades do mundo.
O homem bom que, estimado por todos, onde havia nuvens negras a salpicar a desarmonia, surgia na linha da frente para fazer pontes, desembaciar o caminho e restabelecer relações afectivas entre os amigos.
O homem bom, nascido em Malange, mas com larga vivência benguelense. O homem bom que enquanto finalista do Curso Geral do Comércio na Escola Comercial Vicente Ferreira começou por imortalizar algumas das suas melhores amizades que cruzaram aventuras inesquecíveis como a excursão estudantil realizada em 1958.
O homem bom que compartilharia essa excursão com velhos amigos como Carlos Viegas de Abreu, Chico Antas, Jaime Bastos, José Nunes Sobrinho, Mário Sirgado, Catarino Barber e tantos outros.
E que na primeira etapa acabariam por fazer uma viagem de comboio até ao Dondo, de machimbombo até Moçâmedes, cidade de onde regressariam a Luanda a bordo do navio "Pátria" com passagem pelo Lobito.
O homem bom que deu os primeiros passos na política no Atlético de Luanda, atento "às conversas dos mais velhos" liderados por Aníbal de Melo.
O homem bom que era admirado pela forma como soube cativar o respeito durante a sua passagem pelo Banco de Angola, onde ficou conhecido como o nosso Malmierca, como lhe chamava um outro grande e carinhoso amigo - Júlio Barbosa.
Continuou a ser o homem bom ao abraçar o dirigismo desportivo. Ingressou na Secretaria de Estado de Educação Física e Desporto num tempo de tentativas de materialização de actividades em que uma utopia colectiva ia tomando conta de todos. Pura estultícia!
Essa equipa do dealbar dos anos 80 tentou o que nunca até então tinha sido feito. E a verdade é que, com mais recursos, nada do que aconteceu a seguir se pareceu com o que todos voluntariamente e sem meios, mas com muito querer, tentámos e até certo ponto conseguimos.
O Zeca faz parte de tudo isto. Como profissional foi de uma probidade elevada. Olhamos para a sua família - a Nené, a Bibila, a Claúdia, o Luís e para os netos, e percebemos porque se orgulham dele.
Foi um dos maiores entre os bons. Foi exemplar ao eleger a educação de excelência como o maior activo para a afirmação social dos filhos. Foi um amante da boa literatura e dele salpicavam pingos de cultura de elevada profundidade.
Dotado de um "olho clínico" que lhe permitia distinguir os verdadeiros amigos dos aliados de circunstância, foi o amigo de muitas amizades que atravessavam todas as gerações, géneros e idades.
Foi o amigo de múltiplas vivências, de muitos e maravilhosos momentos, de todos os tempos e de vários temas, desde a política ao trabalho, passando pela família. Foi, por isso, sempre "inclusivo no sentido de ser e de conviver com os outros". Foi um amigo que incorporava, como muito poucos, a invulgar grandeza na simplicidade e a riqueza na cultura.
Nós, os teus amigos, tentaremos replicar a tua atitude perante a tua família e as gerações mais novas como testemunho do exemplo de vida do amigo que enfrentava as adversidades com o mais refinado sentido de humor.
Como "amigo dos amigos, amigo contador de histórias de vida carregadas do mais refinado humor, inteligência e ironia".
Com um humor invejável, conhecedor do tanto que foi apreendendo e aprendendo ao longo da vida, foste um companheiro indispensável nas nossas tertúlias de horas ganhas - e não perdidas como alguns insinuavam!
Durante vários anos perfumaste o Gin - tertúlia que celebrávamos religiosamente todos os sábados em casa do saudoso Beto Van-Duném - com o teu insuperável reportório histórico e intelectual, que todos admirávamos pela sua incomensurável riqueza memorial.
Nos últimos vinte e cinco anos, foste também eleito Secretário-Geral de uma outra tertúlia - "Saca Rolha" - na qual, mais uma vez, impuseste a tua fina e incomparável ironia e relativamente à qual, sem complexo, nunca regateaste esforços para transmitir aos teus amigos de uma geração mais nova toda a tua inesgotável fonte de saber.
Partes ao encontro de outros amigos como o Beto Van-Duném, o Xico Antas, o Baião, o Dionísio Mendonça, o Paulo Jorge, o Carlitos Madaleno, o Amílcar Silva, o António Henrique e tantos outros.
Partes e abres um vazio inconsolável na tua família e nos os teus amigos - que contigo gostavam de afinar a voz e soltar a alma, jamais deixarão de ter em ti um dos seus mais preciosos patrimónios.
Do interior de Angola, de Portugal e do Brasil e de outras partes chegaram-nos subsídios sobre a tua contribuição para a Independência do nosso país.
Foi driblando a PIDE que fizeste chegar panfletos e mensagens que ajudaram a criar redes clandestinas e a alimentar o alento de uma Angola para os angolanos.
Se é certo que disso a história se encarregará, a tua família e os teus amigos não podem adiar o reconhecimento que se impõe a esta parte da tua vida.
Porque, como sinalizam os teus queridos filhos, foste um patriota, que viveu e sentiu a importância da luta pelo nacionalismo, que viu o irmão Jaimito ser preso pela PIDE, a prima Irene Cohen ser morta na luta pela Independência. E toda esta partilha fez ganhar em quem te rodeava a consciência da angolanidade.
Ao despedirmo-nos de ti, o que podemos dizer é que com o teu desaparecimento quem empobreceu fomos nós, pelo que te garantimos que continuaremos a partilhar as lembranças de um homem que nunca teve inimigos e que, afinal, também colocou "pedras nos alicerces do mundo".
Do homem que viveu e partiu embalado pelo som da música que tanta amava: "...deixa a vida me levar, vida leva eu, sou feliz e agradeço com tudo que Deus me Deu"...
Por teres merecido ser feliz, continuaremos como tu a acreditar na Angola que todos sonhámos diferente, e que o vai ser de certeza num tempo que ainda não sabemos quando, mas que mais cedo que tarde acontecerá.
E por ter sido um privilégio para todos nós termos-te entre os nossos melhores amigos, permanecerás eternamente guardado nos nossos corações.

Obrigado Zeca Cohen!