Não havia nada mais importante do que o nosso arroto petrolífero. Anestesiados pelo brilho dos diamantes, nunca pensámos que, mais tarde ou mais cedo, as luzes poderiam apagar...

Inchados, incorporámos a imagem retratada um dia pelo antigo Rei do Cambodja, Norodom Shianouk e passamos então a "ter o nariz na testa". Os códigos aí catalogados apontavam-nos como seres "especiais".

Descodificada a testa, concluiríamos que, afinal, éramos e continuamos a ser "especiais" sim, mas, como diz o meu amigo Ruy Mingas, a fazer contas de subtrair ao Estado...

Com a barriga vazia e os cofres depauperados, metemos a viola no saco, ficamos sem asas para voar e tentamos, aos trambolhões, descer à terra. Tentamos, mas não conseguimos, até hoje, ter os pés bem assentes no chão.

Mergulhados no lodo de uma profunda e já prolongada recessão, continuamos a viver sonambulizados pela vertigem da luandização de uma governação que, durante anos, concentrou o seu talento na entrega de 90% do Orçamento Geral do estado a dois edifícios localizados na Mutamba e separados apenas por uma rua...

Sem termos conseguido meter a cabeça fora do lodo recessivo, insistimos em resistir à descentralização do Estado. Insistimos em privilegiar a sua entronização pessoal, familiar ou de grupo. Insistimos em diluir o poder das instituições.

Dificilmente vamos ter, desta forma, um Estado funcional, eficaz e competente. Dificilmente vamos ter, desta forma, uma reforma de Estado bem sucedida. E sem instituições fortes e credíveis, dificilmente vamos ter, nos próximos tempos, um Estado confiável perante os cidadãos.

Para sacudir a pressão, avançamos agora com um novo sopro constitucional. Um sopro de salvação nacional, dirão alguns. Um expediente de diversão política, dirão outros. Nem uma coisa nem outra.

Sem confiança mútua, uns e outros, esqueceram-se muito cedo de que a principal fonte de riqueza em política é a confiança. E sem essa riqueza é a democracia que passa a ser posta em causa.

Porque se o MPLA não se abrir, se não quebrar internamente a falta de confiança entre as suas várias correntes de pensamento e se estas não começarem a falar lá dentro em voz alta, verá a oposição a cavalgar em cima dos seus erros e fantasmas.

Ao crescer graças a esses erros e fantasmas, a UNITA tenderá, como já está a fazê-lo, a querer ganhar folêgo e a querer impor-se a qualquer preço, lavrando em equívocos políticos perigosos como aquele em que lavra o seu líder ao declarar que "o MPLA tem que sair do poder"!

Ora, quem decide que o MPLA tem que sair ou permanecer no poder não é a UNITA, mas o eleitorado. Quem garante que a UNITA tem legitimidade para amanhã desalojar o MPLA do poder também não é o MPLA, mas o voto dos cidadãos.

O "tem", ao destapar aqui uma carga autoritária inqualificável em democracia, coloca-nos perante o risco de nos virmos a confrontar com novas tentações totalitárias da parte de quem, como oposição, ameaça mutilar as liberdades democráticas.

Com essas tentações, o "tem que sair do poder", faz antever o que poderá vir a ser a sua postura ao converter-se amanhã em poder. Em democracia, meu caro Adalberto, "o têm que sair ou ficar, não existe", conquista-se nas urnas!

Assumido o braço de ferro entre os dois, um e outro, começaram já a utilizar a vitimização como arma de auto-defesa que tende a transformar-se "num velho instrumento de fuga às responsabilidades". Mas, nem um nem outro, o fazem por acaso.

Desesperados, recorrem a este estratagema porque sabem que a vitimização "promete e fomenta o reconhecimento, garante a (falsa) inocência, gera a (ilusória) imunização contra a crítica e esmaga (aparentemente) toda e qualquer dúvida razoável".

Sendo a vitimização a arma de quem se sente enfraquecido e inseguro, ninguém tem dúvida de que para ter crédito, a democracia precisa de funcionar. Ninguém tem dúvida de que a revisão constitucional pode ajudar a aprimorar os seus mecanismos de funcionamento.

Mas, para que atinja o pleno funcionamento no interesse dos cidadãos, não basta fazer esse exercício, mesmo porque se, 90% dos militantes dos nossos partidos políticos nunca leu os seus respectivos estatutos, também 90% dos políticos nunca a lei constitucional.

E se, muitos governantes não lêem os documentos que são por si próprios aprovados no Conselho de Ministros, a forma como se deliciam a ressonar no Parlamento, só prova que ler, é também um dos piores sacrifícios que se pode pedir a muitos dos nossos deputados...

Ora, para lá da actual discussão política à volta a constituição, é preciso que os nossos partidos políticos percebam que, acima dos seus interesses, deve prevalecer sempre a vontade de quem não quer continuar a ser um joguete barato nas suas mãos e de quem aspira pela satisfação das suas crescentes necessidades: os cidadãos.

Por isso, José António Saraiva, meu antigo director no Expresso, tem razão quando diz que "a democracia precisa de ser pragmática, de fazer obra, de dar garantias aos cidadãos de que os filhos viverão melhor do que os pais".

Ora, não é isso que assistimos, mas é isso que está a fazer com que, entre muita gente, comece a instalar-se a falta de confiança no presente e a nascer um sentimento de medo em relação ao futuro.

Ora, embora haja uma elite que, à custa do colossal endividamento do país, vive melhor do que no passado, isso não afasta de todo, entre largas franjas da população, o nascimento e o crescimento de um perigoso sentimento de saudosismo em relação ao passado.

Por isso, como adverte ainda José António Saraiva, "para um regime ser sustentável, tem de ser minimamente eficaz. Não pode haver um abismo, para pior, entre a capacidade de realização de uma democracia e de um regime autoritário - sob o risco das pessoas pensarem que o passado é que era bom".

Atingido o pleno funcionamento, para além de fazer respirar a liberdade política de que precisamos para impor os valores da cidadania, é preciso que a democracia seja eficaz também no plano da governação.

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