Neste mês, o actual Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa (PSD), foi o único Chefe de Estado fora do continente africano presente na investidura de João Lourenço, depois das eleições contestadas por toda a oposição (UNITA, CASA-CE, FNLA e PRS) e sociedade civil.
Quando o hediondo regime do Apartheid já dava sinais de agonia final, com essa votação a uma resolução da Assembleia-Geral da ONU, Cavaco Silva estabelece com os EUA de Ronald Reagan e Inglaterra de Margareth Thatcher uma aliança de suporte internacional ao regime racista da África do Sul.
Marcelo Rebelo de Sousa, no meio da turbulência à volta dos resultados eleitorais, decidiu-se a apoiar João Lourenço, marcando presença na tomada de posse do Presidente angolano para um conturbado segundo mandato.
Cavaco Silva justificou o voto de apoio ao Apartheid por alegadamente "não concordar que as resoluções da Assembleia-Geral apoiem violência, sob qualquer forma, como a única forma de resolver situações de injustiça", como se o regime de Pretória, que discriminava, mutilava e assassinava negros na África do Sul, invadia, agredia e ocupava parte do território angolano, fosse o protótipo de não-violência.
Por seu lado, Marcelo Rebelo de Sousa comparou a legitimidade dos resultados angolanos ao que aconteceu em Portugal, em 2015, quando o derrotado Partido Socialista de António Costa se associou ao Bloco de Esquerda e PCP, formando uma maioria parlamentar, nascendo, assim, a geringonça que afastou do Poder o vencedor das eleições, a direita, liderada pelo PSD.
Para o Presidente de Portugal, tratando-se de Angola, a procura da verdade eleitoral não tem relevância, "o importante é que o Presidente da República assuma as suas funções, o Poder Executivo funcione e o Parlamento tenha todos os membros eleitos a assumir as suas funções".
Dando razão ao The Economist que num artigo sobre as eleições angolanas, intitulado "O vencedor perdeu", escreve que Portugal se apresenta "manifestamente feliz por lidar com o diabo que conhece e com o qual lucra", Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou: "que corra bem para Angola, porque correr bem para Angola é correr bem para Portugal.
De forma dual e defendendo a situação mais lucrativa para Portugal, elogiou o "grande cuidado em relação àquilo que seria a (realização de) manifestação no contexto das tomadas de posse", recusando-se a comentar as detenções de activistas que denunciaram a "fraude" eleitoral, por se tratar de "questões internas".
Entretanto, duas semanas antes da referida investidura, Marcelo Rebelo de Sousa tinha estado em Luanda para os funerais do Presidente José Eduardo dos Santos, cerimónia que se transformou numa espécie de pré-reconhecimento da vitória do MPLA e do seu candidato, quando já estava instalada a crise pós-eleitoral.
Nessa ocasião, o visitante, "grande mestre do fogo de vista e da coreografia", segundo o intelectual português Pacheco Pereira, ou "aparecedor", como criativamente diz o Povo angolano, forçou um encontro com o líder da oposição que já contestava os resultados provisórios lançados pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE).
O Presidente português precisava de saber que, como escreve Mário Pinto de Andrade, "a luta de libertação foi também para a reconquista da Identidade" que inclui a procura internamente dos melhores caminhos para se ultrapassarem as diferenças e encontrar soluções para os diferendos.
O Presidente de todos os portugueses, "passageiro frequente" da rota Lisboa-Luanda-Lisboa, ignorou as denúncias sobre ilegalidades no processo eleitoral angolano feitas por observadores internos e internacionais que se recusaram a classificar as eleições angolanas como livres, justas e transparentes.
Também fez tábua rasa às declarações do seu amigo Jorge Carlos Fonseca, ex-Presidente de Cabo Verde, que, na qualidade de chefe da missão de observadores da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), denunciou as reiteradas violações das leis eleitorais, recomendando, nesse sentido, que se fizesse "o confronto entre a verdade da CNE e a verdade avançada pela UNITA para que as dúvidas fiquem resolvidas".
Ignorou ainda a contestação da sociedade civil, nomeadamente do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA), para o qual as eleições angolanas, apesar de livres e pacíficas, "não foram justas nem transparentes".
Será que, para o Chefe de Estado de Portugal, 73 anos, filho de Baltazar Rebelo de Sousa, antigo governador colonial em Moçambique, a exigência de eleições justas e transparentes que serve para o seu país é dispensável no caso de Angola?
Pela lisura e verdade eleitorais, nas últimas legislativas portuguesas foram anulados mais de 80% dos votos do círculo da Europa, tendo o Tribunal Constitucional determinado a repetição das eleições desse círculo. Esteve em causa a mistura de votos válidos e inválidos que "contaminou" todos.
Marcelo Rebelo de Sousa ignora ainda que, tal como outros povos, os angolanos querem "pensar globalmente, agir localmente, não esquecendo que o pensamento nunca deve ser separado da acção, e reciprocamente", parafraseando o filósofo africano Joseph Ki-Zerbo.
De notar que, no seu relatório de observação eleitoral, o SJA afirma categoricamente que as eleições não foram justas porque "a imprensa tratou de forma desigual os concorrentes antes e durante a campanha eleitoral; nem todas as assembleias afixaram as actas sínteses, nos termos estabelecidos pela Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais; alguns delegados de listas, suplentes, não puderam votar nas assembleias nas quais estavam indicados para trabalhar."
O Presidente de Portugal desconsiderou, igualmente, as denúncias da União Africana, cujos observadores "testemunharam que os materiais usados para capturar as actas da assembleia de voto não duplicaram suficientemente além do terço das oito cópias exigidas. Duplicatas inelegíveis dadas a delegados do partido têm o potencial de alimentar disputas em torno do resultado oficial".
Como professor de Direito em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, certamente, subscreveria a expressão "a justiça não pode produzir injustiça", proferida por Josefa Neto, juíza-conselheira que votou vencida nos acórdãos do Tribunal Constitucional que rejeitam a impugnação dos resultados eleitorais feita pela CASA-CE e pela UNITA.
Talvez o professor também ficasse espantado e perturbado com a denúncia da mesma magistrada segundo a qual não foram analisados os elementos que tornariam clara a "verdade material" da contenda, agudizando ainda mais a suspeição generalizada sobre a origem dos resultados da CNE.
A CNE disse, em contra-alegações neste processo, que cumpriu a legislação. "Porém, os autos a que tive acesso contrariam tal afirmação" e "entendo, por isso, que o acórdão que ora faz vencimento deveria reflectir tal desconformidade e ordenar a reposição da legalidade", de modo a "conferir a necessária transparência ao processo aqui em causa, em prol da verdade eleitoral", afirma Josefa Neto, na declaração de voto.
Por isso, pediu a comparação das cópias das actas apresentadas pela UNITA com as da CNE, o que "permitiria fazer prevalecer a verdade eleitoral na confluência dos interesses soberanos em jogo", disse, insistindo na validade do "pedido de publicação das actas-síntese no sítio de Internet da CNE", acto que não conflitua com a lei geral.
Constitucionalista, com longa carreira de professor e político, Marcelo Rebelo de Sousa sabe, e obviamente sempre ensinou, que não há eleições credíveis e justas sem transparência no processo de realização e de contagem e sem igualdade de acesso aos meios de comunicação social.
Rebelo de Sousa é o mesmo professor que em 2010 qualificou de "muito boa" a actual Constituição angolana "Atípica", segundo José Eduardo dos Santos e "cesarista ou napoleónica" para Jorge Miranda, "pai" da Constituição portuguesa, como lembra o site Maka Angola.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, é "muito boa" a Constituição que subverteu o processo de democratização da sociedade angolana, atribuindo ao Presidente da República tantos poderes, sem qualquer escrutínio, que o transformam numa quase divindade e consolida o absolutismo, matando a separação de poderes e impedindo o desenvolvimento de uma imprensa livre.
Tal como há 35 anos, Cavaco Silva envolveu Portugal na liga de apoio ao regime do Apartheid, hoje Marcelo Rebelo de Sousa coloca o seu país como amparo de um decrépito regime em entropia e sem qualquer capacidade de regeneração, nem de desenvolver o País.