Os manifestantes, convocados através das redes sociais pelo movimento inorgânico "RejectFinanceBill2024", desencadeado pela Geração Z (jovens nascidos a partir de 1997) da era do digital, empunhavam cartazes contra o liberalismo do Presidente e o rumo do país, com dizeres como "Ruto é um ladrão!", "Ruto deve ir embora!", "Acorde, estamos a ser roubados!" ou "o Quénia não é o rato de laboratório do FMI".
Para os contestatários, as referidas medidas fiscais agravariam as já difíceis condições de vida dos mais pobre, num país com cerca de metade da população na pobreza extrema.
Com essa contestada medida, o Governo queniano pretendia arrecadar 2,7 mil milhões de dólares em impostos adicionais para reduzir o déficit orçamental e a dívida do Estado e, assim, responder favoravelmente às exigências do FMI, Banco Mundial e outras instituições credoras.
Isso acontece numa altura em que os quenianos já estão agastados, com uma inflacção alta, aumento dos preços dos alimentos e da electricidade, elevados níveis de desemprego, nomeadamente 70 mil empregos no sector privado perdidos em 2023 e 40% dos empregadores a planear reduzir o pessoal devido ao aumento dos custos operacionais.
Com o país altamente endividado (a dívida pública atinge cerca de 70% do Produto Interno Bruto), para financiar o seu ambicioso orçamento para 2024-25, com uma despesa recorde de 4 mil milhões de xelins (29 mil milhões de euros), Ruto escolheu piorar as condições de vida da maioria pobre.
A situação é tão grave que o Quénia, segundo a organização "Africa is a country", está a contrair novas dívidas para pagar dívidas antigas a taxas de juros cada vez mais altas e para cumprir compromissos internacionais, tem de alocar 30% do Orçamento de Estado para o pagamento de dívidas.
No entanto, num país em que a corrupção política está generalizada, o Orçamento mantém os elevados salários dos políticos e os excessivos gastos de alguns sectores do Estado.
De início, Ruto reagiu às manifestações de forma truculenta, apelidando-as de "ataques" à democracia, ao Estado de Direito e às instituições, ordenando a polícia a reprimir a "violência e anarquia".
Assim, agentes da polícia, em uniforme ou à paisana, dispararam munições reais, balas de borracha e gás lacrimogéneo, para além de raptarem centenas de jovens manifestantes que em Nairobi decidiram atacar e "ocupar o Parlamento" para impedir que os deputados aprovassem, a 25 de Junho último, o referido projecto-lei de duras medidas fiscais.
Perante a resistência dos jovens e com o alastrar das manifestações por todo o país, depois de brechas entre os agentes da polícia, que iam se recusando a continuar com a repressão, passados três dias, quando o balanço das mortes já atingia as três dezenas, Ruto recuou.
Anunciou a anulação das medidas, entretanto aprovadas pela sua maioria política no parlamento, com 195 votos a favor e 106 votos contra da oposição que acusou Ruto de "matar crianças" quenianas.
Ignorando a sua própria ordem dada à polícia para reprimir as manifestações por todos os meios, Ruto, ao recuar, reconheceu que os jovens se manifestavam pelos direitos do Povo queniano. "O povo pronunciou-se", disse.
"Depois de ouvir, atentamente, o povo queniano, que disse alto e em bom som que não quer ter nada a ver com esta Lei das Finanças 2024, inclino a minha cabeça e não promulgarei a Lei das Finanças 2024, que será, portanto, retirada", disse Ruto numa comunicação à Nação.
No entanto, no mesmo discurso, o Presidente do Quénia continuou a defender a sua proposta como necessária para reduzir a enorme dívida do país, de quase 80 mil milhões de dólares. Mas admitiu que iria consultar os jovens contestatários para encontrar uma forma de enfrentar a grave situação das finanças públicas do país.
Em resposta, os manifestantes, mostrando desconfiança em relação ao Presidente e suas promessas, pediram a demissão de Ruto e da sua maioria, no poder desde 2022, como forma de mudar o rumo político do país.
Depois de um 2023 de protestos violentos contra irregularidades eleitorais e a subida do custo de vida, os jovens da Geração Z queniana, desta vez, mostram que deixaram de confiar na palavra de Ruto, que a cada crise vai apresentando soluções paliativas que, geralmente, não cumpre.
No ano passado, respondendo às violentas manifestações de norte ao sul, exigindo justiça eleitoral e mudanças de políticas, o Presidente do Quénia prometeu, sem cumprir, alterar as estruturas responsáveis pela organização de eleições e contagem dos votos.
Note-se que o actual Presidente queniano ganhou, à tangente, as presidenciais de Agosto de 2022 com 50,49% dos votos. O seu adversário e líder da oposição, Raila Odinga, obteve 48,85% dos votos.
Resultados contestados, inclusive por quatro dos sete membros da própria Comissão Eleitoral, entre os quais a vice-presidente do órgão, Juliana Cherera, que denunciou a "natureza opaca do processo" eleitoral.
Num país com um historial de violência pós-eleitoral (em 2007-2008, os confrontos pós-eleitoral, os piores desde a independência em 1963, causaram mais de 1.100 mortos e centenas de milhares de deslocados), esperava-se que Ruto tivesse aprendido a lição e evitasse usar balas para reprimir protestos populares.
Sem ler e interpretar os sinais de acontecimentos recentes em África, nomeadamente em países como o Senegal, onde uma juventude contestatária frustrou a tentativa de continuação do Sallismo, depois de Mack Sall, o Chefe de Estado começa por reagir, incendiando ainda mais o protesto.
Sem compreender que o novo processo revolucionário no continente, desencadeado pela juventude, maioria da população continental, que não se revê nessas lideranças que trabalham para si próprios e para cumprir metas impostas de fora para dentro, Ruto recuou tarde.
Sem perceber ainda que em política, reacção tardia é entendida como incapacidade de compreensão do que se passa à sua volta ou tentativa de se agarrar ao poder a qualquer preço, o líder do Quénia sai fragilizado dessa crise.
Com isso, para se manter no Poder, tem de estar preparado para três anos de permanente contestação, de aumento das exigências dessa Geração Z, que se mostra preparada para explorar as fragilidades do seu Presidente. É o princípio do fim.
O povo queniano pronunciou-se contra problemas estruturais, provocados por esgotados modelos de desenvolvimento geradores de desigualdades, que estão na base da indignação e das manifestações anti-Ruto que eclodiram em todo o país.
Os quenianos manifestaram-se contra essa forma de fazer política sem transparência, baseada em acordos assinados nas costas e contra o Povo, que endividam o país para favorecer a classe política e os "credores" internacionais em prejuízo das populações.
Disseram que recusam imposições políticas e que querem ser ouvidos e participar da elaboração das políticas do país para lá dos períodos eleitorais.
Os quenianos pronunciaram-se também contra uma polícia que, em vez de defender a lei e a ordem, protege políticos principescamente pagos, nalguns casos com rendimentos que ultrapassam os 70 salários mínimos nacionais.
No Quénia, o Povo pronunciou-se contra essa forma de fazer política com olhos voltados e para agrado de Washington, Londres ou Paris, ignorando os anseios e as vozes internas, como as de intelectuais como Ngugi wa Thiong"o que se manifestou "muito perturbado" com a recente visita de Ruto a Washington, de onde saíram acordos "prejudiciais" para o Quénia.
Contra o liberalismo adoptado pelos detentores do Poder no Quénia, que, sem ler os sinais dessa "revolução" em curso no continente, continuam a pensar que é mais importante prestar contas ao Presidente americano que aos povos que dizem governar, de acordo com denúncia do jornalista Kwesi Pratt Jnr, do Ghana.
Revolução que seguiu da África Ocidental para a Central e para a Oriental, a caminho da Austral, para defenestrar do Poder os que querem continuar a governar contra a vontade dos povos.
Os quenianos pronunciaram-se porque querem ser, soberanamente, os donos das suas escolhas e destinos e não deixar essas escolhas em mãos de embaixadores ocidentais.