É, de facto, inegável que o país durante muito tempo andou ao desnorte, principalmente na cidade capital. Trago na memória o dia em que o então governador de Luanda Bento Bento, ao fazer entrega das pastas ao novo inquilino, Higino Carneiro, afirmou: "Em Luanda todo mundo é general, por isto quero ver brincarem com este porque ele também é general". Isto leva-nos a compreender a tamanha desordem em que se encontrava a cidade capital, como reflexo do que se passava nas demais províncias.

A afirmação de um Estado depende da sua capacidade em garantir a sua soberania, bem como o exercício da sua autoridade a todos os níveis. Assim, o Governo saído das eleições de 2017 tem a legitimidade de usar todos os meios ao seu dispor para impor e resgatar todos os pressupostos que perigam e colocam em causa a sua autoridade, ou que venham a colocar em causa o Estado democrático e de direito que se quer construir.

Dito isto, o actual Executivo pode piorar o que está mal e degradar o que ainda está bem, recorrendo ao slogan adoptado pelo partido no poder e várias vezes referenciado pelo titular do poder Executivo. Para o Estado fazer o uso do (ius impere) deve, sobretudo, salvaguardar os direitos e garantias dos cidadãos. Punir deve ser o último recurso do Estado, enquanto ente soberano e pessoa do bem, a quem compete o cumprimento do contrato social defendido pelo teórico Rousseau. Assim, caberá ao Estado criar instituições capazes e instrumentos eficazes para a satisfação das necessidades colectivas. Em seguida, tem o dever de promover a liberdade e as garantias fundamentais para que essas tenham espaço físico para a sua concretização, criando um aparato institucional capaz de descobrir não a fonte onde se revelam os problemas, mas sim a origem de onde derivam os problemas que causam as violações das normas estabelecidas e, por fim, entender que "em último lugar" a acção punitiva do Estado deve ser chamada a intervir.

Ora, aplicando esta lógica de pensamento, devo aqui manifestar algumas consequências da tão aplaudida e ao mesmo tempo contestada "Operação Transparência" e a denominada "Operação Resgate".

Há famílias em Luanda, como em quase todo o país, cujo agregado familiar é composto em média por mais de seis elementos, onde nenhum dos seus membros tem um trabalho formal. O desemprego é uma questão transversal em todo o país, com incidência mais visível em Luanda por ser a cidade capital e albergar o maior número de habitantes (estimando-se que actualmente sejam mais de oito milhões de habitantes). Para que estas famílias possam sobreviver têm recorrido aos negócios informais (táxis, venda ambulante etc), sendo que os rendimentos daí provenientes servem para custear as despesas correntes destas, bem como dar algumas condições aos filhos, mesmo que deficitárias, como a educação.

Não que seja a favor desta prática, mas, sendo vertical, despindo-se de preconceitos ou estereótipos, o Governo tem a obrigação de criar as condições básicas para que grande parte destes problemas venham a ser resolvidos. Se não, vejamos: Os numerosos táxis que circulam pela cidade capital, a maior parte não possui licenças de aluguer que os permite o exercício desta actividade, sendo que a responsabilidade da atribuição destas licenças é do Ministério dos Transportes; os vendedores ambulantes através das administrações municipais poderiam recorrer ao licenciamento das suas actividades como comerciantes em nome individual, e poderia aqui ilustrar outros serviços que poderiam ser formalizados se não existisse tanta burocracia e a falta de informação. Agora eis a questão: o porquê de o sustento de muitas famílias angolanas provir do mercado informal? Antes desta resposta é importante olharmos para a economia do país, que é predominantemente informal (na ordem de 75%). Esta situação salta à vista de qualquer observador atento, facto que pressionou o Governo a adoptar de forma urgente o IVA, de maneira a alargar a sua base tributária.

Penso que podemos fazer o seguinte exercício, para responder à questão acima: Porque é que a nossa economia é predominantemente informal? Porque o Estado tem se mostrado incapaz na resolução e criação de mecanismos que levariam a mitigar o actual cenário.

Por meio do voto, incumbimos os governantes de satisfazer as nossas necessidades básicas, como fornecer luz, água, educação e emprego, entre outras. A não concretização deste desiderato faz com que grande parte dos cidadãos se sinta marginalizada num país onde o fosso entre os ricos e pobres é enorme, onde a classe média não existe.

Bairros periféricos sem as mínimas condições de habitabilidade, onde tudo falta, desde água, luz, saneamento básico, vão crescendo de forma desordenada ao redor dos grandes centros urbanos, sob o olhar pávido do Governo. Mas, ainda assim, estas comunidades não desistiram da vida ou de acreditar em dias melhores e, dessa forma, conseguem vencer a marginalização. Por isto vemos zungueiras, ou melhor, famílias inteiras na zunga para garantir o mais básico para a sua sobrevivência.

Agora vejamos, é justa esta operação no que diz respeito à questão da venda ambulante? Entendamos que o problema não é a alternativa de ir ao mercado mas antes a pobreza, a falta de água e luz gratuita. Por exemplo, as famílias cujo chefe de família ou a mulher encontram-se desempregados como irão pagar a luz e a água que o Estado não dá, se não há uma fonte de receita? Inibir a venda ambulante é violar direitos, liberdades e garantias fundamentais que o Estado não garante, não promove e nem investiga para aplicar as medidas adequadas.

Não se deve confundir o combate à corrupção com a promoção das condições económicas e sociais para o desenvolvimento sustentável dos angolanos. As medidas não podem ser irracionais, pelo contrário devem ser equacionadas para que produzam resultados satisfatórios. Partir uma casa e deixar a pessoa sem abrigo é submetê-la ao tratamento desumano e degradante, é matá-la duas vezes, e fazê-la sentir a dor que não sentiria por uma morte natural causada por uma calamidade ou acidente.

Entendo que a "Operação Resgate", mais do que uma vantagem objectiva, como é vista por alguns de forma emocionada, acarretará claramente mais desvantagens, e a principal que devo aqui ressaltar é a de colocar sem eficácia o lema "Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem". Criem condições para esta franja da população saia do informal e passe à formalidade. Caso contrário, deixem as zungueiras, os ambulantes em paz. Reforcem sim o: Resgate do poder de compra dos cidadãos e das famílias; Resgate da saúde do povo; Resgate do satélite perdido; Resgate das empresas multinacionais que saíram do país por causa da corrupção; Resgate do dinheiro investido nas estradas descartáveis; Resgate de todo o dinheiro que saiu de forma ilegal do pais; Resgate da lei que visava fiscalizar o poder executivo por parte legislativo; Resgate do saneamento básico; Resgate da reforma educativa que vai deformando os educandos; Resgate da falta de luz e água; Resgate dos serviços administrativos do Estado da burocracia.

Deste modo o Estado resgatará a sua autoridade e de facto estarão criadas as condições básicas para que a sua autoridade recaia sobre os prevaricadores.

Estanislau Domingos é advogado, professor universitário e consultor jurídico. Licenciado em Direito/Relações internacionais, tem também uma pós-graduação em Direito Autárquico e Finanças locais, a que junta a frequência do mestrado em Ciências Jurídico-económicas e Desenvolvimento