Não há nada que o corrobore, mas este Clube de discussão que junta em Sochi centenas de pessoas de todo o mundo que mantém boas relações com Moscovo, onde, normalmente se aborda a questão da economia e segurança internacionais, decorre normalmente no início de Outubro e este ano a data foi mudada para coincidir com o day after das eleições norte-americanas.
E, nestas coisas, nada é por acaso, porque, fosse Donald Trump ou Kamala Harris a ganhar as chaves da Casa Branca, o Presidente russo teria sempre neste palco uma oportunidade de falar directamente para o Presidente-eleito dos EUA, país fundamental para desenhar um desfecho negociado para a guerra no leste europeu.
No Kremlin, mesmo nunca o tendo assumido, era Trump o preferido para vencer as eleições, como o demonstram as declarações de algumas das figuras mais proeminentes russas, como o antigo Presidente Medvedv, ou o líder bielorusso, Alexander Lukashenko.
O agora "reeleito" Donald Trump não esconde ser "amigo" de Vladimir Putin, mesmo que Putin nunca se tenha pronunciado da mesma forma sobre Trump, tendo mesmo afirmado que para o Kremlin ele ou Harris era igual.
Mas o que o chefe do Kremlin fez esta quinta-feira em Sochi, no contexto do Valdai International Discussion Club, lançado em 2004, que Moscovo quer que seja uma espécie de contraponto com o Fórum de Davos, foi de amigo, ao relembrar a Donald Trump o desenho das condições mínimas que aceita para iniciar quaisquer conversações sobre uma saída negociada para a guerra na Ucrânia.
Isto, porque Putin não quer que Donald Trump, que, recorde-se, tem insistido nos longos meses de pré-campanha que vai acabar com a guerra rapidamente assim que chegar à Casa Branca, dê o tiro de partida para esse processo negocial com condições que são inaceitáveis para a Federação Russa.
É que se Trump começar por querer cedências do lado russo que os russos não querem ver em cima da mesa, é a relação entre Moscovo e Washington que se pode deteriorar de forma séria, o que poderá fazer colapsar quaisquer hipóteses de sair benignamente deste conflito.
E, como tal, Putin aproveitou a sua ida a Sochi para reafirmar, numa conversa com os jornalistas, à margem do Valdai International Discussion Club, as condições mínimas de Moscovo para negociar uma saída pacífica para o conflito.
E a primeira de todas é a questão da neutralidade ucraniana, que terá de garantir, através dos mecanismos internacionais existentes para o efeito, que abdica em definitivo da sua pretensão de aderir à NATO, sendo condição sine qua non para isso forjar um acordo de longo termo em vez de uma solução temporária.
E para o amigo americano ouvir, Putin sublinhou, citado pelos media russos, que "a Ucrânia nunca será um país verdadeiramente independente e soberano se não optar claramente pela neutralidade", abdicando de aderir à Aliança Atlântica, a organização de defesa euro-americana criada pelos EUA após a II Guerra Mundial para fazer frente à então URSS.
"Sem a neutralidade é muito difícil imaginar qualquer forma de boa vizinhança entre a Rússia e a Ucrânia", apontou Putin, acrescentado que sem essa neutralidade a Ucrânia "será sempre uma marioneta nas mãos de potências estrangeiras ocidentais".
Outra das condições inamovíveis de Putin é a questão dos territórios integrados na Rússia - Crimeia (2014) e Donetsk, Lugansk, Zaporizhia e Kherson (2022) - que o Kremlin quer ver limpos de forças ucranianas nas áreas onde ainda resistem.
E, não menos importante, Moscovo exige a Kiev que respeite a língua russa, permita o uso do russo como língua formal entre os seus falantes na Ucrânia, a cultura e a religião russa ortodoxa sem estribos...
Vladimir Putin aproveitou ainda para voltar a insistir na ideia de que a velha ordem mundial baseada nas regras ocidentais definidas pelos EUA na década de 1940/50, está acabada, que a nova ordem é já uma realidade e que a Rússia é parte inteira dessa nova realidade, estando os países ocidentais a procurar apenas, sem sucesso, "ir contra a marcha da História".
"O mundo precisa da Rússia e não há nada que Washington ou Bruxelas possam fazer sobre isso", reiterando que "a procura de manter a hegemonia ocidental por parte dos EUA dos seus aliados europeus está condenada ao fracasso".
Sublinhou anda, sempre no mesmo tom de advertência, que os lideres ocidentais "podem estar a criar as condições para uma tragédia global", porque "ninguém pode garantir que este caminho de escalada contra a Rússia não vai levar a um confronto nuclear catastrófico".
O Presidente russo disse ainda que "os EUA e os seus aliados não poupam esforços para manter a sua hegemonia global e, perante isso, ninguém pode garantir que as armas nucleares não vão ser usadas em algum momento no futuro".
E deu um exemplo desse caminho que está a ser seguido: "As afirmações ocidentais sobre a procura de uma derrota estratégica da Rússia na Ucrânia, sendo a Rússia o país com o maior arsenal nuclear do mundo, demonstra a irresponsabilidade dos líderes ocidentais".
"A fé cega do ocidente na sua impunidade e no seu excepcionalismo pode levar a uma tragédia global", advertiu, apelando depois aos EUA e aliados europeus para aceitarem que o mundo é hoje multipolar e que nele todos, sem excepção, têm lugar e um papel a desempenhar desde que abandonem as suas aspirações hegemónicas.
E, por fim, garantiu que a Rússia não vê o ocidente como o inimigo e está pronta para cooperar desde que sob uma genuína e justa ordem internacional erguida por todos.
Na mesma ocasião, Putin aproveitou para fazer um rasgado elogio a Donald Trump, desde a forma como se revelou um político arguto no seu primeiro mandato quando todos dele diziam ser apenas um homem de negócios.
E aproveitou para elogiar a coragem que revelou quando, durante a campanha, foi alvo de tentativas de assassinato e a forma como lidou com essas situações, que, notou, o impressionaram sobremaneira, comportando-se "verdadeiramente com coragem, como um verdadeiro homem".
Não deixou se felicitar o amigo" americano pela vitória e frisou que gostou de ouvir Trump dizer durante a campanha que estará pronto quando chegar à Casa Branca para encetar conversações com a Rússia.
"Ter manifestado desejo de reestabelecer relações com a Rússia e de acabar com a crise ucraniana merece a minha atenção", apontou Vladimir Putin, embora sem dar essa reaproximação como um dado adquirido.
"Não sei o que vai acontecer. Não faço ideia sobre o que vai suceder", disse o chefe do Kremlin, deixando clara a sua disponibilidade para falar com Trump, mas sublinhando que é ao americano que abe agora dar o primeiro passo, estando pronto para lhe atender o telefone.
Isso pode ser um momento relevante porque, claramente, Trump não quer deixar prolongar a guerra na Ucrânia, porque a sua prioridade, tendo de apoiar um amigo, é Israel, a quem, segundo o antigo chefe da CIA, Leon Panetta, dará "carta branca" para atacar o Irão.
E com essa perspectiva em mente, Donald Trump tem todo o interesse em manter a sua garantia e promessa de que vai acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas, ou sejam muito depressa.
Até em Telavive estão a contar com esse "cheque em branco" de Trump para gerir as crises no Médio Oriente, como ficou claro com a forma expressiva como o ministro da Segurança Nacional israelita, o radical Itamar Bem-Gvir, reagiu à sua vitória, no X (antigo Twitter): "Yesssssss!" com emojis a mostrar músculo e bandeiras dos dois países, EUA e Israel.