Quando o conflito na Ucrânia entra na fase final da sua 4ª semana, e quando se esperava que este fosse o momento para acelerar as conversações de paz, depois de o Presidente ucraniano ter dito claramente que não havia outro caminho, tendo mesmo dito aceitar que o seu país não entrará na NATO, a maior exigência da Rússia, o céu volta a escurecer sobre o campo de batalha.

Isto, porque, depois de avanços importantes, Zelensky, ao 26º dia de guerra, retoma o discurso duro ameaçando eternizar a guerra, provocar danos a Moscovo dos quais vai precisar de gerações para recuperar repondo como questão inamovível a exigência da reposição da integralidade territorial da Ucrânia aos russos, ou seja, exigindo que a Crimeia, a península anexada em 2014, depois de um referendo, e as repúblicas do Donbass, Donetsk e Lugansk, voltem a integrar o mapa da Nação ucraniana.

Este endurecimento das posições de Zelensky, que foi materializado em vídeos de guerra divulgados nas redes sociais, e num discurso ao Parlamento israelita, como já sucedeu noutras alturas embora com menor veemência, surgiu depois do Presidente ucraniano ter estado a falar ao telefone com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, claramente o mais acérrimo defensor da intensificação do conflito apoiando militarmente Kiev, e com o Presidente dos EUA, Joe Biden, que aaba de apelidar o Presidente russo Vladimir Putin de "assassino" e "criminoso de guerra".

Coincidência ou não, a verdade é que sempre que Zelensky surge a amaciar a sua posição e a admitir fortalecer as negociações de paz para acabar com a guerra que está a devastar a Ucrânia, os media divulgam que esteve a falar, de novo, ao telefone com os líderes britânico e norte-americano, alterando de seguida o tom dos seus discursos, acicatando os ânimos, a ponta de, desta vez, ter mesmo advertido que o mundo caíra na III Guerra Mundial se a Rússia não for travada, insistindo na zona de exclusão aérea na Ucrânia, o que obrigaria a NATO a combater com a Rússia, o que tanto Washington como Moscovo já disseram que seria abrir caminho para uma devastadora guerra nuclear.

E, aparentemente, um exemplo desse endurecimento foi a declaração sobre a situação em Mariupol, a cidade portuária do Mar de Azov, que faz parte do Donbass, a mais fustigada pelas forças russas, estando praticamente arrasada em mais de 80%, e onde está sedeado o famoso Batalhão de Azov, com reminiscências nazi-fascistas que foi integrado nas forças regulares ucranianas pelo Governo de Zelensky.

O ministro da Defesa ucraniano veio agora afirmar que a resistência nesta cidade vai ser até ao último homem, recusando de forma liminar o ultimato feito pela Rússia - foi dada autorização para que as forças ucranianas saíssem da cidade até ao final da manhã de hoje -, que tem, praticamente a cidade tomada, excepto alguns bairros do centro, onde estão refundidos os homens que restam do Batalhão Azov, e onde as forças de Moscovo contam com o apoio de forças oriundas da Tchetchénia, conhecidas pela sua ferocidade inigualável em combate.

Depois de afirmar que a integralidade territorial da Ucrânia é uma questão inegociável - o que torna qualquer avanço nas conversações de paz impossível porque as republicas do Donbass e a Crimeia são assunto que os russos nem sequer aceitam levar à mesa das negociações - e de anunciar a recusa de uma rendição em Mariupol, o centro de Kiev foi, já esta madrugada, de Domingo para segunda-feira, 21, alvo de vários ataques através de mísseis de longo alcance em áreas aparentemente sem validade militar, destruindo, entre outros locais, um centro comercial e um bairro residencial desabitado no momento, embora os russos digam que, por norma, estas são zonas tomadas pelas milícias civis armadas pelo Governo para defesa da capital.

Este cenário resulta num novo impasse negocial, que coincide com a entrada em cena de novas armas do arsenal russo, nomeadamente os mísseis hipersónicos, que se deslocam a velocidades que podem ir até 10 vezes a velocidade do som - 331 metros por segundo -, tornando obsoletos todos os sistemas de defesa antiaérea conhecidos, uma espécie de "boas-vindas" ao Presidente dos EUA, Joe Biden, que chega esta semana à Europa para participar numa reunião de alto nível da NATO, outra da União Europeia e depois uma visita à Polónia, sempre com o conflito na Ucrânia na... mira.

Em pano de fundo deste conflito e dos avanços e recuos, tanto na mesa das negociações como no terreno dos múltiplos confrontos que decorrem, está o mapa das batalhas, onde sobressai a Rússia a cercar diversas cidades, entre estas as mais populosas e estrategicamente importantes, desde logo Kiev, a capital, mas também Kharkiv, no leste, a segunda maior urbe do país, Mariupol e Kherson, no sul, sudeste, ou ainda Mokolaiv, sul, fundamental para a tomada da zona costeira do Mar Negro e onde está situada uma das mais importantes estradas que ligam Kiev ao sul do país.

A possibilidade de Jerusalém

Apesar de Volodymyr Zelensky ter apontado, mesmo depois das declarações pouco entusiasmantes para quem quer ver esta guerra terminar, Jerusalém como palco ideal para um encontro com Vladimir Putin, o Kremlin respondeu através de Dmitry Peskov, o seu porta-voz, afirmando que "neste preciso momento, não há nada que justifique, ainda, um encontro ao nível presidencial".

"Não foram feitos progressos suficientes para que tal tenha lugar porque os dois presidentes não teriam nada para dar como concluído e tal encontro não passar de mais uma circunstância", adiantou.

Peskov disse ainda, citado pelo Sputnik News, que o local para que esse encontre se realize "é claramente uma questão secundária" mas a Rússia está "agradecida a todos os países que se têm oferecido para acolher tal encontro quando vier a sceder".

A geoestratégia inerente a este conflito

É igualmente importante a análise geoestratégica. Depois de ouvir e ler diversos analistas, o Novo Jornal faz, em síntese, a radiografia do que está em causa nesta guerra do leste europeu.

Sabendo-se que a Rússia deu como seguro que não aceitaria, já desde 2007, que o avanço da NATO, a organização militar ocidental criada em 1949 para fazer face ao avanço da então União Soviética, e depois do seu apêndice militar, o Pacto de Varsóvia, para as suas fronteiras, através da integração na organização de países do leste europeu, antigos membros países comunistas, considerando que a Ucrânia é a derradeira linha vermelha daquilo que entende como a sua segurança vital, tal como a Geórgia.

Face aos incentivos ocidentais para que Kiev desse o passo seguinte para entrar na NATO, Zelensky inscreveu na Constituição, em 2019, como objectivos nacionais prioritários a entrada na NATO e na União Europeia, tendo a Rússia usado esta disposição constitucional como um dos motivos de topo para a invasão, procurando, através desta, assegurar que não terá bases da NATO a escassos 700 quilómetros de Moscovo, distância que pode ser feita em 30 minutos pelos modernos mísseis norte-americanos, sendo essa a justificação para esta invasão que Moscovo apelida de "operação militar especial".

Mas em causa não está apenas o confronto dos países "ocidentais" europeus e norte-americanos e a Rússia, no mapa mundi da geoestratégia os analistas mais finos não denotam dúvidas de que os países da NATO liderados pelos EUA pretendem fragilizar a Rússia com este esforço de guerra e com o pesado pacote de sanções, prolongando o conflito, até vergar Moscovo, fazendo, em definitivo, da Rússia uma potência secundária, de forma a que, no já claro e evidente, confronto global pela supremacia económica e militar mundial entre a China e os Estados Unidos possa "decorrer" sem os russos a "atrapalhar".

Mas também esse objectivo ocidental parece estar a enfrentar dificuldades porque Pequim já veio dizer que não abdica da sua relação privilegiada com a Rússia, reforçando as rotas e os tratados comerciais entre ambos, assim como a Índia, que já veio igualmente opor-se às sanções ocidentais contra Moscovo, mantendo igualmente as fortes relações comerciais e acelerando-as mesmo como o prova o mais recente negócios no campo petrolífero de 3 milhões de barris por dia durante 3 meses e meio a preços abaixo do mercado.

A China veio mesmo afirmar que, embora negando que o esteja a fazer no presente, pode, no futuro, vir a apoiar a Rússia militarmente se isso se revelar essencial neste conflito do leste europeu, o que deixa em evidência que Pequim está ciente de que se os norte-americanos levarem a Rússia a ficar de joelhos, Pequim é o... inimigo que se segue.

Como, de resto, o evidencia o denominado AUKUS, o tratado entre os EUA, o Reino Unido e a Austrália, que visa estancar o rápido e avassalador avanço da influência chinesa no Índo-Pacífico, demonstrando onde estão, presentemente, as mais sólidas preocupações norte-americanas, embora a questão do leste europeu tenha surgido como um imbróglio, eventualmente, inesperado, com o qual Washington teve de lidar quando tinha o seu foco no outro lado do mundo.

Também África pode vir a revelar-se uma questão importante neste combate global pela influência entre EUA e China, mas também a Rússia e a União Europeia, como o demonstrou a votação na Assembleia Geral da ONU de uma resolução de condenação da agressão russa apresentada pelos EUA, onde dos 193 membros, 141 votaram a favor, cinco contra e 35 abstiveram-se, sendo que, destes, 28 africanos, entre os 54 que compõem o continente, votaram a favor e os restantes abstiveram-se, incluindo Angola e também Moçambique, a Namíbia ou a África do Sul, para referir apenas os países da parte austral.

Face a este cenário onde se joga uma partida de xadrez mundial, a Ucrânia é pouco mais que um bispo que está a ser sacrificado em nome de uma estratégia que ultrapassa largamente a geografia do leste europeu mas que pode resvalar para uma tragédia global face aos efeitos que está a ter na economia mundial, desde logo no capítulo alimentar, com os preços a subirem vertiginosamente fruto da importância que os dois beligerantes, Rússia e Ucrânia, têm como celeiros do mundo, produzindo 30% dos cereais consumidos no planeta e perto de 50% do que consome o continente africano.

Para já, as dificuldades em alimentar milhões de pessoas em dificuldades, especialmente no oriente africano, são sérias ao ponto das Nações Unidas terem lançado um apelo para que o mundo não se esqueça destas pessoas, assoladas que estão já por sucessivas secas históricas, fruto das alterações climáticas, enquanto o preço do crude sobe, o dos combustíveis também, estando já a gerar protestos em partes do mundo mais desenvolvido, como a Europa ou alguns países sul-americanos e asiáticos.

Contexto

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, em mais de 60%.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

Milhares de mortos e feridos e mais de 3 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página, inclusive as suas consequências económicas, como o impacto no negócio global do petróleo.