O turbilhão político em que os democratas estão desde que Joe Biden, neste Domingo, 21, saiu de cena, empurrado para a porta dos fundos por uma frente interna de pesos-pesados do Partido Democrata, pode acabar por criar mais problemas do que parece à primeira vista.

Ao contrário da organização político-partidária que existe em Angola, mas também na generalidade dos países com democracias consolidadas, os partidos nos EUA não possuem lideranças evidentes, estas são geradas a partir dos cargos públicos para os quais são eleitos...

Como é o caso do próprio Presidente do país, ou dos líderes das duas câmaras do Congresso, Representantes e Senado, mas também das suas figuras históricas ou ex-titulares de "top jobs", como são disso exemplo prático os ex-Presidentes.

E é neste particular que o problema pode surgir, porque se há pesos-pesados inequívocos são os ex-Presidentes Barack Obama e Bill Clinton. E estes estão em lados opostos no que toca à solução para lidar com a desistência a que Joe Biden foi forçado.

Bill Clinton, e a sua mulher, Hillary, nome não menos importante nas manobras de bastidores, bem como a grande maioria das figuras democratas de peso, desde logo o próprio Joe Biden, está a endereçar o seu apoio a Kamala Harris, a ainda vice-Presidente dos EUA, que já anunciou ser candidata à nomeação...

Só que Barack Obama, que, provavelmente, é a grande figura de referência actual dos democratas, não pretende ir por esse caminho, pelo menos é o que está a noticiar a imprensa norte-americana, preferindo que a convenção de meados de Agosto do partido seja palco de uma disputa aberta para o nome que dará a cara no boletim de voto contra Donald Trump.

Tudo, porque, resultante do idiossincrático processo de escolha nos Estados Unidos, tanto entre democratas como republicanos, os nomeados são escolhidos pelos delegados à Convenção conseguidos ao longo de longas eleições primárias, estado a estado.

E, desta feita, o vencedor dessas eleições primárias acaba de ser posto fora do palco pela frente de pesos-pesados, assustados com as sondagens que destacavam, de longe, Trump como grande favorito face a Joe Biden...

Só que as sondagens não são muito melhores se a opção for por Kamala Harris, a vice de Biden, que aparece nesta posição de favorita entre democratas muito porque, com tão pouco tempo para resolver este imbróglio - as eleições são a 05 de Novembro -, era mais fácil fazer subir um degrau aquela que era a recandidata a vice-Presidente dos EUA.

Para já, a preferência de Obama, e, aparentemente, também de Nancy Pelosi, a ex-líder democrata da câmara dos Representantes no Congresso, por uma convenção, que começa a 19 de Agosto, aberta a uma disputa sem estribos deverá ser anulada pela avalanche de apoios que estão a ser dirigidos a Kamala Harris e esta, quase, quase de certeza, deve aparecer como a única cara dos democratas.

Uma das mais prováveis justificações para esta disparidade de preferências entre os "generais" democratas é que uma disputa renhida na Convenção pode favorecer a estratégia eleitoral, especialmente porque isso iria retirar espaço mediático a Trump, podendo galvanizar as hostes anti-Trump.

Outra questão não menos importante é que, para os estrategas democratas, e para a defesa dos seus interesses, que nos EUA são, devido ao peso dos lobbys, muito relevantes, é que os republicanos, sob a capa do agora endeusado Trump, podem, além de ganhar a Casa Branca, ficar ainda com a Câmara dos Representantes e o Senado.

Tal cenário, quando o Tribunal Supremo dos EUA já está "nas mãos" de Trump, porque foi ele que indicou a maioria dos juízes que o compõem, para toda a sua vida, se também a Casa Branca e as duas câmaras do Congresso ficarem do lado republicano, dificilmente os famosos pesos e contrapesos da democracia norte-americana estariam assegurados porque Donald teria o poder todo nas suas mãos...

Mulher, negra e liberal...

Com 59 anos, Harris, que passa a ser jovem face ao septuagenário Trump (inverte-se assim a questão da idade como arma de arremesso política), aparece nesta condição de putativa candidata à Casa Branca dos democratas com duas particularidades que seriam capas de jornais de todo o mundo, não fora esta situação dramática que envolve o contexto em que Biden sai de cena.

Kamala Harris não só esmaga o problema da idade que levou Joe Biden, quase a fazer 82 anos, à porta dos fundos, a raiar a humilhação, devido à soma de "gaffes" bizarras, mau desempenho no debate com Trump ou a sua debilidade física cada vez mais evidente, como pode ser a primeira mulher a chegar à Casa Branca e, ainda mais especial, uma afro-indiana-americana a protagonizar esse feito.

Todavia, muito, muito dificilmente Kamala conseguirá esse momento histórico, seja porque lhe falta popularidade, seja porque o seu desempenho político, como sublinham vários analistas, tem sido pouco menos de pobre. Não se lhe conhece uma ideia.

E até nas suas deslocações ao estrangeiro em representação do debilitado Biden, como sucedeu nas reuniões de topo da NATO na Alemanha ou na falhada cimeira de paz da Ucrânia na Suíça, em Junho passado, não foi além de algumas frases batidas e lidas no teleponto sem densidade ou diferenciadoras...

Alias, é isso mesmo que resulta da interpretação das sondagens, que nos EUA aparecem quase diariamente, onde Harris consegue desempenho escassamente superior a Biden, apesar de, como o Novo Jornal noticiou em Abril do ano passado, a questão da provecta idade tanto de Joe Biden, 81, como de Donald Trump, 78, serem apontados por mais de 70% dos eleitores norte-americanos como um problema sério, preferindo que fosse alguém mais novo a chegar à Casa Branca.

O nervoso miudinho de Trump

Outra nota que, menos de 24 horas após o anúncio de Biden de que estava de saída, está a emergir é que Trump mostra uma inesperada inquietação, apesar das sondagens lhe darem uma esmagadora vantagem, especialmente após o desastrado, para Biden, debate, e, ainda com mais ênfase, após o atentado falhado contra a sua vida há cerca de uma semana.

Isto, porque, depois do abandono de Biden, o ex-Presidente e candidato dos republicanos veio dizer que Joe Biden "nunca esteve apto para ser Presidente", tendo mesmo sido "o pior de sempre nos EUA", atirando ainda contra Kamala a sugestão de que esta "será muito mais fácil de bater nas urnas".

Foi o Donald Trump de sempre, já despido das vestes de ungido após o atentado, que veio a terreiro reagir à mais que provável nomeação de Kamala para candidata democrata, apontando-a como sendo ainda mais fácil que Biden de bater nas urnas.

E, nas redes sociais, como tanto gosta, desta feita na de que é proprietário, a "Truth Social", disse que Biden nunca esteve à altura do cargo, acrescentando que os americanos "vão agora sofrer grandemente por causa da sua Presidência", fazendo questão de dizer que é ele que vai "resolver os problemas".

E o tal nervoso miudinho fica ainda mais evidente quando, como notam os media norte-americanos, entre os "generais" republicanos já está em curso uma acesa discussão sobre as mudanças na estratégia eleitoral, e realocação de recursos financeiros, que a chegada de Kamala à corrida como "number one".

Todavia, tendo decorrido apenas algumas horas após a pouco surpreendente desistência de Biden, ainda não é evidente como é que Trump vai reformular a sua campanha para lidar com Harris, porque já não vai ter como recurso para animar as hostes as constantes "gaffes" de Joe Biden.

E o mundo...

Para o resto do mundo, esta mudança pode ser relevante porque, apesar de escassa, Kamala Harris não deixa de ter possibilidades, até porque nada garante que estes pouco mais de três meses de campanha não sejam suficientes para revelar uma nova Kamala...

Mas há uma coisa que se sabe, e que dificilmente, sem um teleponto muito afinado, a já quase certa candidata democrata terá muitas dificuldades, que é na vertente externa da política norte-americana, porque as suas aparições fora de portas, a substituir Biden, foram não apenas apagadas mas também demonstrações de que a política externa não é o seu forte.

Um momento que ficou como demonstração da sua escassa capacidade para interpretar o mundo foi, na Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, em Fevereiro deste ano, quando fez declarações publicas sem sair do teleponto e com frases sem conteúdo, repetindo apenas ideais simples, como, de resto, foi então vincado por alguma imprensa.

Face a isso, em caso de vitória em Novembro, o que esperar de Harris? No caso da guerra na Ucrânia, a sua Administração não fugirá do guião actual, que é "apoiar Kiev até onde for preciso" mas com as limitações impostas pelo equilíbrio que existir no Congresso, mantendo a liderança da NATO em Washington.

Mas as grandes diferenças poderão surgir no que respeita ao conflito em Gaza, onde Israel terá numa eventual Administração Harris um osso bastante mais duro de roer, podendo ser mais exigente para com o Governo de Telavive no que diz respeito ao genocídio que está a protagonizar sobre a população palestina.

E sobre a política de Washington para o resto do mundo, desde logo o continente africano, Kamala Harris será claramente diferente da estratégia evidentemente isolacionista de Donald Trump, que não teve entre 2016 e 2020 e não terá agora qualquer interesse em melhorar as relações bilaterais ou multilaterais.

Como no seu primeiro mandato, Trump deixará esse papel, secundário na sua visão do mundo, para os seus embaixadores, que terão a espinhosa missão de procurar convencer os Governos africanos, asiáticos ou sul-americanos, com escassas excepções, como é o caso da China, o grande inimigo a abater do republicano, de que em Washington se leva muito a sério a política externa.