Se os aliados europeus e norte-americanos de Kiev autorizarem, como é quase certo que o farão, o uso dos misseis de longo alcance para atacar posições russas fora da geografia directa da guerra, como bases aéreas e infra-estruturas, o que fará o Kremlin para retaliar?

Uma das primeiras medidas que o Presidente russo, Vladimir Putin, disse que faria se os países ocidentais permitirem tal escalada, é a Rússia fornecer misseis semelhantes a países e organizações inimigas desses mesmos países ocidentais.

E se tal suceder, esta guerra entrará oficialmente na definição de guerra mundial, desde logo porque Putin disse que todos os interesses dos países em questão estarão na mira das armas russas, incluindo os seus próprios territórios.

Mas nem é essa a principal preocupação nas capitais ocidentais, de Washington a Londres, Paris ou Berlin... o que mais inquieta estes países é Moscovo entregar a organizações e países inimigos do ocidente em todo o mundo misseis sofisticados.

Alguns exemplos são conhecidos, como os rebeldes Houthis, no Iémen, que, se tiverem acesso a misseis anti-navio, como os supersónicos Onix, seriam capazes de interromper toda a navegação marítima no Mar Vermelho/Canal do Suez ou no Golfo de Aden, o que seria um terramoto na economia global.

Este cenário teria ainda como consequência a saída das esquadras de porta-aviões norte-americanos que estão no Mediterrâneo Oriental para apoiar Israel no esperado conflito com o Irão e o seu aliado Hezbollah, do Líbano, porque, com os sofisticados misseis russos presentes na região, os navios dos EUA estariam em risco permanente.

Ou as milícias xiitas no Iraque e na Síria terem acesso a armas sofisticadas, como misseis balísticos, como os já conhecidos Iskander M, muito usados na Ucrânia, ou hipersónicos, com os quais levariam o terror às dezenas de bases norte-americanas, britânicas e francesas espalhadas por todo o Médio Oriente e Ásia Ocidental

Este risco de escalada é o argumento recorrente da teatralização de Washington para, sempre que é colocada na mesa a entrega de novas armas a Kiev, se manifestar inicialmente contra e, depois, passar a aceitar, como sucedeu já com os misseis balísticos ATACMS ou mesmo os F-16.

Mas a escalada é certa

Como tem sucedido praticamente deste o início do conflito, mesmo que a memória já seja ténue dos primeiros meses de 2022, logo após a invasão russa, este cenário tem-se repetido, como os anúncios altamente mediatizados de novas "armas maravilha" para Kiev mudar o curso da guerra.

Primeiro foram os misseis ligeiros Javelin anti-tanque ou os anti-aéreos Stinger, depois os canhões 777 ou os Himars, a seguir vieram os blindados pesados alemães Leopard ou os norte-americanos M1 Abrams, até aos misseis balísticos franceses e britânicos Scalp G e Storm Shadow ou os Made in USA ATACMS até aos recentes F-16...

Na actual situação, salvo raras excepções, todo o armamento considerado não-estratégico convencional ou nuclear ocidental já foi entregue aos ucranianos, sem que a tal mudança no curso da guerra fosse conseguida.

Já só falta que estas mesmas armas na posse de Kiev, como os F-16 ou os misseis balísticos de médio-longo alcance ATACMS, ou similares existentes nos arsenais norte-americanos, passem a ser usadas pelas forças ucranianas para ataques em profundidade em território russo.

Recentemente, num encontro com os governos europeus, Jack Sullivan, o conselheiro principal para a segurança do Presidente norte-americano Joe Biden, veio à Europa explicar a franceses, britânicos e alemães que essa autorização é inútil porque os russos já deslocaram os seus meios aéreos para fora do alcance dessas armas, graças à vastidão to território da Federação Russa.

Todavia, como tem sucedido sem excepção, essa autorização acabará por ser facultada a Kiev, como temem diversos analistas militares e de política internacional, incluindo o major-general Agostinho Costa ou o norte-americano John Mearsheimer, um reputado professor da Universidade de Chicago, com a novidade de que esse passo acarreta riscos nunca observados até aqui, como fica patente na hipotética resposta simétrica do Kremlin acima referida.

A rara entrevista de Syrski

Na primeira entrevista que deu a um canal de TV internacional, o CEMGFA ucraniano, General Oleksandr Syrski, veio agora defender que a Ucrânia está a ter sucesso na frente de Kursk, aberta a 06 de Agosto, o que permitiu a Kiev ocupar mais de 1000 kms2 e mais de 100 povoações em território russo.

Nessa mesma entrevista à CNN, o chefe militar ucraniano garantiu ainda que as suas forças estão a conseguir travar os avanços russos no Donbass, especialmente na frente de Pokrovsk, um importante centro logístico rodoferroviário para alimentar a frente de guerra.

Isto tudo quando é cada vez mais evidente que os objectivos da invasão ucraniana de Kursk foi um erro estratégico crasso, com nenhum dos objectivos alcançados, desde logo o de ocupar a central nuclear russa ou ainda obrigar Moscovo a retirar forças do Donbass para proteger esta fronteira.

Admite todavia que as suas unidades estão sob "tremenda pressão" no Donbass, onde muitos analistas afirmam que as forças empregues em Kursk feriam muito mais falta e que esse movimento falhado permitiu aos russos avanços substantivos em Donetsk, nomeadamente na direcção de Pokrovsk.

Com uma expressão facial claramente contrastante com as palavras optimistas, o CEMGFA ucraniano procurou nesta entrevista desviar as atenções das notícias que começam a surgir nos media ocidentais sobre não apenas o erro estratégico do avanço em Kursk, mas também sobre as insustentáveis perdas em material e humanas das forças ucranianas que esse movimento gerou.

Isto, porque, como explicou recentemente John Mearsheimer, em Kiev parece que ainda não se percebeu que estão a travar um tipo de guerra que a Rússia escolheu, que é o atrito, onde a ocupação territorial é secundária face ao objectivo principal que é a destruição da capacidade de combate do inimigo através das baixas nas suas fieiras e destruição de equipamento.

O que parece encaixar com as palavras de Syrski que, ainda nesta entrevista à CNN, dizia que as forças russas não avançam um metro em seis dias na região de Pokrovsk, fazendo disso a demonstração do sucesso da sua estratégia.

Mas não dedicou uma única palavra ao facto de as forças ucranianas estarem sem capacidade de rodagem de unidades para descanso do pessoal, que as forças de elite foram empenhadas em Kursk, deixando o Donbass para as unidades regulares de conscritos, onde sofrem milhares de baixas por dia.

Também os russos sofrem elevadas baixas, mas a diferença é que Moscovo não apenas dispõe de mais capacidade logística, como possui forças de reserva que permitem rodar as unidades sujeitas a maior pressão na frente de combate.

Zelensky exige "resultados visíveis" após grande remodelação do Governo

Entretanto, Volodymyr Zelensky, exigiu "resultados visíveis" ao seu Governo, após a maior remodelação ministerial desde o início da invasão russa, em 2022, que incluiu a substituição do emblemático chefe da diplomacia, Dmytro Kuleba.

Muito apreciado pelo Ocidente, Kuleba, recorda a Lusa, foi substituído por Andriï Sybiga, um diplomata menos conhecido, e vários outros ministros foram demitidos numa remodelação vista como destinada a reforçar o controlo da Presidência da República sobre a gestão dos assuntos do país.

"É fundamental que as instituições governamentais funcionem agora tão activamente quanto possível - mais activamente do que antes - a todos os níveis", defendeu Zelensky, no seu discurso diário à nação, citado pela Lusa.

Para tal, instou a sua nova equipa governamental a desenvolver mais ainda o sector do armamento, fazer avançar as negociações sobre o pedido de adesão à União Europeia (UE), zelar pela estabilidade financeira da Ucrânia e fornecer "mais apoio à linha da frente", onde as forças militares de Kiev estão sob pressão no leste do país.

"Existem dezenas de tarefas muito específicas desse tipo, e cada um no seu cargo deve apresentar resultados visíveis durante o outono", acrescentou.