Depois de no artigo anterior (edição do Novo Jornal de Sexta-feira, 27/05/2022) termo-nos debruçado sobre algumas cobranças injustas a que são submetidas empresas e pessoas singulares por parte de despachantes oficiais e equiparados e bancos, trazemos à discussão, nesta edição, a questão de um desalinhamento de alguma legislação tributária nacional em relação à CRA. Reportamo-nos especificamente ao Código do Imposto Predial - CIP, aprovado pela Lei n.º 20/20, de 9 de Julho, e às Regras sobre Inscrição, Avaliação e Reavaliação de Imóveis, aprovadas pelo Decreto Presidencial n.º 121/21, de 10 de Agosto, particularmente no que diz respeito ao direito à habitação por parte dos cidadãos, ao dever de contribuição de cada um em função da sua capacidade económica e ao princípio do Sistema Fiscal da justa repartição dos rendimentos e da riqueza nacional.

Antes do desalinhamento ora referido, é avisado relevar a existência de algumas outras questões que emergem da legislação angolana sobre o Imposto Predial (IP), que têm a ver com o objecto da tributação e os sujeitos passivos do referido imposto. É suposto que o imposto sobre imóveis incida sobre o valor patrimonial daqueles, tendo como sujeitos passivos os respectivos proprietários. E isso porque, tendo em conta um dos princípios económicos da tributação, segundo o qual a contribuição de cada um deve ser tanto quanto possível proporcional aos seus rendimentos - convertido na norma constitucional de todos contribuírem em função da sua capacidade económica -, assume-se a titularidade de um imóvel e o seu valor como proxies da capacidade económica/contributiva e da riqueza dos seus proprietários. Ocorre, entretanto, que em Angola é-se sujeito passivo do IP pela posse ou pelo usufruto de imóveis - desde que estes se destinem a quaisquer fins que não sejam as actividades agrícola, silvícola ou pecuária -, assim como por se auferir rendimentos pelo seu arrendamento. É, por isso, questionável o tratamento da cobrança de imposto sobre rendimentos de imóveis em sede da legislação sobre o Imposto Predial, por um lado, e a tomada de usufrutuários de habitações - particularmente no caso de propriedades resolúveis - como sujeitos passivos do respectivo IP, já que não atende à incapacidade económica eventual daqueles de se tornarem imediatamente proprietários das habitações arrendadas por aquisição a pronto pagamento.

No que à propriedade ou usufruto - especificamente de propriedades resolúveis - de habitações diz respeito, o CIP estabelece a tributação do IP nos seguintes termos: uma taxa de 0,1% para habitações de valor patrimonial até Kz 5.000.000,00; o valor de Kz 5.000,00 para habitações de valor patrimonial entre Kz 5.000.001,00 a Kz 6.000.000,00; e uma taxa de 0,5% sobre o valor em excesso a Kz 5.000.000,00 para habitações de valor superior a Kz 6.000.000,00. E sobre rendimentos auferidos de tais propriedades incide uma taxa de 25%, desde que o tributo não seja inferior ao que resultar do valor do imposto devido calculado com base no valor patrimonial, caso em que prevalecerá este. Entretanto, para as habitações de construção precária (definidas na Regras como sendo as feitas de chapas de zinco, pau a pique, capim, adobe com ou sem tratamento e madeira, em condições de descarte) e as habitações sociais ("as de baixa renda, apoiadas pelo Estado ou por pessoas colectivas de direito público, destinadas a criar melhores condições de acesso à habitação com qualidade, por parte das pessoas com menor capacidade aquisitiva, incluindo as mais desfavorecidas, quando destinadas à habitação própria permanente"), o CIP estabelece isenções específicas mas só mediante o reconhecimento da Administração Tributária e a pedido dos interessados, os quais devem, para o efeito, fazer prova da situação jurídica do imóvel a seu favor. Quer isso dizer que se antes os imóveis até o valor patrimonial de Kz 5.000.000,00 estavam automaticamente isentos permanentemente do pagamento do IP e os acima desse valor a incidência da taxa do IP era sobre o excedente àquele valor, com o novo CIP todas as habitações com valor patrimonial a partir de Kz 1,00 ficaram sujeitos ao pagamento do imposto, supostamente em nome de um alargamento da base tributária.

Assim, depois da questão prévia ora apresentada, evidencia-se aqui um primeiro desalinhamento do CIP em relação à CRA. É que, dado o direito constitucional à habitação de todo o cidadão e o princípio do pagamento de impostos e taxas em função da sua capacidade económica/contributiva e riqueza de cada um, entendemos que, em termos de habitação, o Estado só deveria tomar como proxies de capacidade económica/contributiva e riqueza a detenção de propriedades que estivessem além da habitação própria e permanente das famílias e de um valor que correspondesse a uma habitação condigna para uma família. Desse modo, toda a habitação própria e permanente com valor patrimonial abaixo do que fosse avaliado como sendo uma habitação condigna para uma família, deveria estar isenta de modo permanente e oficioso do pagamento do IP, enquanto as habitações próprias e permanentes com valor patrimonial superior àquele valor ficariam sujeitas ao pagamento do imposto mas apenas sobre o excedente. Do modo como se acha disposto na legislação, primeiro, por questões de conciliação, apresenta-se um problema de gestão para a Administração Tributária a aplicação da norma sobre a tributação das habitações de valor patrimonial entre Kz 1,00 e Kz 5.000.000,00 (cerca de euro 11.000,00) e a norma sobre a isenção das habitações precárias e de baixa renda, pois torna-se difícil perceber como é que se escaparia de uma habitação precária ou de baixa renda naquele intervalo de valores e - eventualmente - até mesmo acima, nas condições de Angola. Depois, apresenta-se a questão de pretender-se que cidadãos com casebres - que são as habitações precárias de chapas de zinco, capim, pau-a-pique, adobe e madeira, e que geralmente se acham em assentamentos informais - se apresentem à Administração Tributária para os inscrever e ainda terem de apresentar pedido para a isenção do pagamento do IP. De outro modo, também não se vislumbra nem capacidade para a Administração Tributária demandar de modo coercivo que os titulares de tais casebres se apresentem a ela, nem para atender a todos e a cada um deles de modo oportuno - no caso de que tal fosse possível -, além do evidente problema moral que se coloca face à extrema precariedade de tais alojamentos. Isso, como se perceberá, leva à descredibilização das autoridades.

Aqui importa referir que o CIP angolano parece ter sido copiado da legislação portuguesa - como é o caso de boa parte da legislação nacional -, especificamente do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI). Mas a cópia foi mal feita, porque, por exemplo, o CIMI português prevê, para a habitação própria permanente: (i) isenção permanente do seu pagamento, de forma automática, para o agregado familiar que não tenha um rendimento bruto anual superior a euro15.295,00 (cerca de Kz 496.407,00 mensais em Angola, por 14 meses, que inclui o subsídio de férias e o 13.º) e cujo valor patrimonial dos imóveis detidos não seja superior a euro 66.500,00 (cerca de Kz 30.216.071,00 em Angola); e (ii) isenção temporária, por até 3 anos, por requerimento do contribuinte, na condição do rendimento anual colectável do agregado familiar ser inferior a euro 153.300,00 (cerca de Kz 4.975.428,00 mensais em Angola, por 14 meses, incluindo o subsídio de férias e o 13.º) ou a habitação ter valor patrimonial de até euro 125.000,00 (cerca de Kz 56.797.125,00 em Angola).

Outro desalinhamento do CIP em relação à CRA está no facto dos titulares de contratos de aquisição de habitação ao Estado, por renda resolúvel, serem, à luz do CIP, enquanto usufrutuários, sujeitos passivos do IP. Entretanto, os arrendatários, enquanto não concluírem o pagamento das habitações, não serão proprietários das mesmas, sendo que a facilidade proporcionada pelo Estado para que os cidadãos as adquiram por renda resolúvel constitui uma forma de acomodar a capacidade económica reduzida implícita dos mesmos que não lhes permite adquiri-las com pagamento à vista, além de que o seu preço é subsidiado com o mesmo fim. Por outro lado, estão impedidos de trespassar, locar ou onerar tais habitações ou o seu direito de usufruto, justamente porque não se constituem como proprietários efectivos. Então, e tratando-se de habitação própria e permanente do titular do direito à propriedade resolúvel, achamo-nos diante de uma situação de injustiça tributária uma vez que, no caso, a pagamento do IP como contribuição dos visados para as despesas públicas e da sociedade não está de acordo com a sua capacidade económica/contributiva.

Há, por isso, fundamento para que se promova a revisão do CIP de modo a adequa-lo à CRA, assegurando-se justiça tributária e no sentido da prossecução da melhoria das condições de vida dos cidadãos contribuintes...