Filosoficamente, "O Véu de Penélope" é um convite à reflexão sobre o custo da procrastinação consciente, a fragilidade das ficções convenientes e a coragem necessária para um dia deixar de desfazer o que se teceu - e, finalmente, enfrentar a verdade.
De acordo com os dados preliminares divulgados pelo Ministério das Finanças (MINFIN), referente ao Relatório de Execução do Orçamento Geral de Estado (OGE) para o exercício económico de 2024, Angola registou uma receita corrente (excluindo a receita de financiamento) no montante de 14,6 biliões de kwanzas (aproximadamente USD 16,7 mil milhões), correspondente a 14,3 por cento do Produto Interno Bruto (PIB). A execução da receita corrente situou-se em linha com o orçamento aprovado, com uma taxa de execução de 98,9 por cento. Desta, a receita petrolífera totalizou 9,1 biliões de kwanzas (cerca de USD 10,5 mil milhões), representando 62,8 por cento da receita total. A receita não-petrolífera ascendeu a 5,3 biliões de kwanzas (cerca de USD 6,2 mil milhões), correspondendo a 37,2% do total da receita.
O desempenho da receita petrolífera foi sustentado pelo aumento da produção e das exportações de petróleo, que se fixaram, respectivamente, em 1,124 milhões e 1,078 milhões de barris por dia. O preço médio do petróleo em 2024 rondou os USD 80 por barril. Por detrás dos indicadores ostensivamente positivos apresentados pelo MINFIN, começa a desenhar-se uma realidade que contrasta fortemente com a retórica oficial: a de uma trajectória das finanças públicas que permanece estruturalmente insustentável. Esta dissonância entre discurso e substância tem implicações profundas, não apenas em termos de credibilidade institucional, mas também no plano social, em que se intensifica a percepção de que os sacrifícios exigidos à população não têm como destinatário final o interesse público, mas, antes, outras prioridades que permanecem por esclarecer.
Ora vejamos:
Abaixo, apresentamos a tabela com a composição da receita e da despesa, comparando os valores aprovados no OGE para 2024 com a sua execução. O desempenho da receita petrolífera foi determinante para evitar um colapso mais acentuado, com uma taxa de execução de 116 por cento face ao previsto, permitindo ao Executivo ocultar o fraco desempenho da receita não-petrolífera, cuja execução ficou-se pelos 79 por cento do orçamentado. Este desequilíbrio estrutural ficou ainda mais evidente no domínio do financiamento: enquanto a captação de recursos no mercado doméstico atingiu apenas 60 por cento da meta prevista, no mercado internacional, o desempenho foi ainda pior, situando-se em apenas 35 por cento. Como havíamos antecipado na análise de Novembro de 2023, permanece inexplicável o grau de optimismo infundado das estimativas macro-fiscais utilizadas pela Equipa Económica (EE). A dissociação entre projecção e realidade confirma não apenas a fragilidade da base tributária não-petrolífera, mas também a dependência crítica de variáveis exógenas e voláteis, como o preço do petróleo, para a estabilidade orçamental. A cereja no topo do bolo é a constatação de que, mesmo com receitas extraordinárias provenientes do sector petrolífero, a sustentabilidade das finanças públicas continua comprometida, enquanto o povo arca com os custos de uma governação cuja prioridade parece cada vez mais distante do interesse colectivo.
O desmedido e irresponsável optimismo da EE volta a manifestar-se como um exercício de fé cega, ancorado em premissas frágeis sobre o dinamismo do sector não-petrolífero e na crença persistente de que os bancos comerciais continuariam, de forma quase inercial, a absorver dívida pública sem ponderar o risco de incumprimento do Estado ou os constrangimentos de liquidez do próprio sistema financeiro nacional. Tal como Penélope desfazia à noite o que tecia de dia, também o Executivo parece empenhado em construir uma narrativa orçamental que se desmorona silenciosamente nos bastidores, sustentando-se numa ilusão há muito exposta. A metáfora do Véu de Penélope é, particularmente, apropriada neste contexto: aquilo que se apresenta como prudência fiscal e previsão técnica é, na verdade, um exercício de dissimulação recorrente, que adia decisões inevitáveis e mascara desequilíbrios estruturais evidentes. Não se trata de incapacidade técnica, mas de um acto deliberado de negação - uma estratégia que, ao persistir, transfere o custo da ilusão para os cidadãos, cada vez mais sacrificados em nome de uma estabilidade orçamental que existe apenas nos relatórios oficiais. Como já dissemos anteriormente, não é preciso recorrer a modelos econométricos sofisticados para perceber onde está o problema - basta, aliás, querer ver. Pasme-se!
Por outro lado, com uma execução global do OGE aprovado de apenas 77,2 por cento, é legítimo questionar se a actual orientação da política fiscal conduzida não configura, de forma dissimulada, uma estratégia de consolidação orçamental de natureza restritiva, não declarada oficialmente, mas evidenciada por práticas recorrentes de subexecução orçamental em áreas-chave da despesa pública. Tal abordagem parece privilegiar a manutenção de sinais de disciplina fiscal destinados a satisfazer os interesses dos mercados financeiros, mesmo que tal implique o sacrifício de políticas públicas essenciais para a coesão social e o crescimento económico inclusivo. Do gasto total, o serviço da dívida consumiu 44,4 por cento, enquanto as despesas com bens e serviços, incluindo a saúde e a educação, fixou-se nos 14,2 por cento. Esta escolha de prioridades revela uma preocupante assimetria na formulação da política económica, onde a salvaguarda da "confiança dos mercados" se sobrepõe ao compromisso com o bem-estar da população. Neste contexto, o povo surge como o principal sacrificado - um mártir silencioso de uma ortodoxia fiscal que, sob o pretexto da estabilidade, perpetua a estagnação e agrava as desigualdades estruturais.
O Executivo liderado pelo Presidente João Lourenço enfrenta um momento decisivo: ou rompe com o ciclo de inércia e ilusão, ou continuará a gerir a economia por impulso, à margem de uma estratégia coerente de desenvolvimento. A reestruturação da dívida pública abriria o tão necessário espaço fiscal para que o Executivo pudesse liderar uma agenda económica verdadeiramente transformadora que privilegie o investimento e o estímulo à actividade económica fora do enclave petrolífero. Em paralelo, a adesão plena do sector petrolífero ao regime cambial, com a domiciliação nos bancos nacionais da receita da exportação de petróleo, deixaria de condenar o Kwanza a uma desvalorização crónica. É neste ponto que se exige da EE do Executivo não apenas aparente competência técnica, mas coragem política. Aos que, nos corredores do poder, murmuram que "não há espaço político para propor", cabe lembrar que essa resignação é, na prática, uma forma de cobardia institucional. Quem não tem capacidade ou convicção para propor as medidas económicas certas - ainda que impopulares - deveria, com dignidade, colocar o seu cargo à disposição. O País precisa de liderança com visão e coragem, não de gestores do declínio.
Vale a pena recordar as palavras de Winston Churchill, que afirmou: "A coragem é considerada, com razão, a primeira das qualidades humanas, porque é a qualidade que garante todas as outras." O País precisa de decisores que não apenas compreendam a gravidade do momento, mas que tenham também a bravura de propor e implementar mudanças reais, mesmo com riscos associados. A esperança não nasce do conforto, mas da coragem de agir quando tudo parece adverso - e é nesse gesto que reside a verdadeira liderança.n
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
Bibliografia
Ministério das Finanças de Angola, Relatório de Execução Trimestral do Orçamento Geral do Estado: IV Trimestre de 2024, Março, 2025.
Standard Bank Angola: Africa Flash Note Abril 2025.