À semelhança dos demais municípios, no país, três órgãos políticos enformam o poder autárquico em São Miguel: Assembleia Municipal, Câmara Municipal e Presidente da Câmara Municipal, sendo esse singular e os dois primeiros colegiais, todos dominados pelo Movimento para Democracia (MpD), fruto das suas repetidas maiorias qualificadas, secundado pelo Partido Africano de Independência de Cabo Verde (PAICV), o que configura um ecossistema político de bipolarização permanente e de partidarização do espaço público local, facto transversal a outros domínios da vida sócio-política Cabo-verdiana.
A Assembleia Municipal e a Câmara coabitam de forma cordial em São Miguel, havendo, de igual modo, uma relação saudável entre a Câmara Municipal e o poder central, num contexto particular de homogeneidade político-partidária, ao contrário do que acontece em cenários de zebrismo político-partidário, em que se registam alguns atritos, quer a nível local, quer na relação entre o poder central e o local.
São Miguel, como os demais municípios, dispõe de receitas de origem nacional, local e internacional. As fontes nacionais são os fundos de financiamento dos municípios e os contratos-programa com o poder central. As locais compreendem os impostos, taxas e os empréstimos bancários, enquanto as internacionais têm a ver com os financiamentos de parceiros, doações e as remessas dos emigrantes. Os fundos de financiamento dos municípios e as remessas dos emigrantes têm particular destaque. A canalização dos fundos de financiamento dos municípios é regular e pontual, mas insuficientes para fazer face às demandas sócio-económicas locais, situação que se regista em todos os municípios cabo-verdianos, com pouquíssimas excepções da Praia e Mindelo, o que, de alguma forma, coloca as câmaras municipais numa situação de fragilidade política e de quase subserviência ao Governo Central.
A autarcisão trouxe ganhos políticos, sociais e económicos consideráveis para todo o país, em geral, e para São Miguel, em particular. Desde 2000, ano em que São Miguel se tornou efectivamente numa autarquia que são os munícipes (o soberano local) que escolhem, com o seu voto, os actores políticos da governação local. A esse ganho político, junta-se a proximidade entre os governantes e os governados, a eficácia e celeridade na oferta de serviços administrativos, a criação de infra-estruturas básicas, com progressiva satisfação das necessidades sociais básicas dos munícipes, cujo impacto combinado coloca São Miguel na 13.ª posição no ranking dos 22 municípios de Cabo Verde, com valores progressivos no Índice de Coesão Territorial (89,3%) e no Índice Compósito de Coesão Territorial (0,361), respectivamente. Contudo, persistem ainda vários desafios, desde o reforço dos níveis de participação política dos munícipes, a descolonização partidária do espaço público, o combate à prática de compra de votos, a redução da pobreza, o reforço da resposta às necessidades sociais básicas dos munícipes e a dinamização da economia local.
A realidade de São Miguel constitui uma evidência empírica de que as autarquias são a solução viável para aproximar os serviços sociais básicos dos munícipes e reduzir a pobreza a nível local. Ademais, mostra que as autarquias, sendo a boa solução, não representam, a priori, o fim dos desafios sociais, económicos e políticos de determinado território. A solução em relação aos mesmos é uma busca permanente que ocorre na dialéctica processual das autarquias de que elas são seguramente uma boa mola impulsionadora. Por isso, insistir na premissa de primeiro criar as condições e só depois institucionalizar as autarquias leva Angola a atrasar-se continuamente e a um risco de as adiar ad aeternum. O caminho é o inverso, invés do aumento do número de municípios e de províncias no âmbito da nova divisão político-administrativa como o discurso oficial quer nos fazer crer.
Afinal, a questão das autarquias está colocada no País desde a Lei Constitucional de 1975, reiterada na de 1992 e ampliada na Constituição de 2010. Contudo, volvidos 49 anos de independência, nenhum município ganhou o estatuto de Autarquia. E agora, com graves implicações de ordem financeira, foram criados mais 162 novos municípios fora do âmbito das autarquias, violando a Constituição que define uma governação político-administrativa local autónoma como autarquias.
Ora, face à experiência autárquica de São Miguel, Angola tem 5 lições a aprender:
1. Havendo necessidade imperiosa de institucionalizar novos municípios, ela devia ocorrer no âmbito do processo autárquico;
2. Trabalhar arduamente, a montante, no âmbito da cidadania, para evitar a reprodução da bipolarização política e a partidarização do espaço público nas futuras unidades autárquicas;
3. O caminho certo para aproximar os serviços sociais básicos dos munícipes e reduzir a pobreza a nível local é a autarcisão do País e não a desagregação do mesmo em mais municípios e províncias;
4. As autarquias não são sinónimo de ausência de desafios sociais, económicos e políticos no município, mas seguramente são a via mais certa para os combater.
5. Os cidadãos angolanos devem mobilizar-se e assumir um papel pro-activo, do ponto de vista de participação, quer no processo de discussão, como no de materialização futura das autarquias.n
*Assistente Social, Docente e Investigador Auxiliar
Centro de Estudos Africanos (CEA)
Universidade Católica de Angola (UCAN)
1 Este artigo é um produto do programa de pesquisa "Melhorar o Ambiente de Pesquisa em Angola por meio do Desenvolvimento de Capacidades (2019-2024)", financiado pela Embaixada da Noruega e integrado por Scanteam e CMI (Noruega), UCAN, UAN e Piaget-Benguela (Angola).