Ao ler a obra de Moisés Malumbo (2001), que aborda a vivência do povo Ovimbundu do planalto central, reforça algo que já sabia, por ter o privilégio de vivenciar. A educação informal (conversas nos Jangos), os usos e costumes que se transmitem no seio familiar. Os nossos antepassados não eram instruídos, mas eram bem-educados. Ainda segundo Malumbo (2001), Mutuyakevela apregoava a instrução, como a única forma de vencer os desafios do desenvolvimento económico e social, bem como a elevação da capacidade de resistência contra a ocupação colonial. Os nossos antepassados respeitavam-se, seguiam as orientações dos seus líderes (Reis). A instrução foi o que fez que o soberano do Reino do Kongo,

Muemba Nzinga (Muemba-ne-Lumbu), que adoptou o nome de D. Afonso I, se aliasse aos portugueses, na ânsia de instruir e impulsionar o desenvolvimento do seu reino, o que, como se sabe, foi gorado e traído pelos colonialistas portugueses, que apenas procuravam a massificação da ocupação do território e o consequente aumento do comércio de escravos. Não é o que interessa neste texto. Pretendemos reflectir sobre o problema de ter de passar no exame de aptidão para ingressar no ensino médio técnico-profissional, o que é profundamente lamentável, pois amputa o desenvolvimento do adolescente.

Apercebi-me este ano, por via dos órgãos de comunicação social, dada a confusão que se gerou com as listas e pautas, que os alunos que pretendem ingressar no ensino técnico-profissional pública passaram a realizar um exame de aptidão, para terem acesso aos cursos nas escolas de ensino técnico-profissional.

Fiquei, de facto, escandalizado, pois excluir da formação técnico-profissional adolescentes entre 15 e 17 anos, através de uma prova (um único momento vai determinar o futuro de uma criança), não me parece ter sido bem pensado. A obrigatoriedade da prestação do exame de aptidão no ensino técnico-profissional foi dimanada pelo Decreto Presidencial n.º 167/23, de 8 de Agosto, que, no seu n.º 1, artigo 52º, refere que "Em cada instituição só são admitidos a um curso específico de formação média-técnica os candidatos que, além de satisfazerem os requisitos de candidatura, tenham obtido pelo menos 10 valores, numa escala de 0 a 20, em cada uma das provas de selecção exigidas para o efeito, mesmo que fiquem vagas por preencher". O decreto perseguiu a selecção dos candidatos à frequência destes cursos, esquecendo que a qualidade de um candidato não é obra de uma única prova, é trabalho árduo ao longo da formação e demonstração da confiança da instrução que os níveis precedentes estão a aportar aos jovens. Excluir as crianças da sua formação logo nas classes de partida é uma irresponsabilidade dos adultos que proporcionam condições para que estes adolescentes se percam.

A minha experiência enquanto vice-decano para área académica de uma Instituição de Ensino Superior (IES) diz-me que, quando um candidato falha na primeira tentativa, a prestação vai declinando nas tentativas subsequentes (explicado pela perda da rotina de estudar), dificilmente consegue entrar nas próximas tentativas. Com muito pesar, assisti jovens e pais a espernear-se chorando, apelando por clemência que nem sempre foi possível conceder. Agora, criar essa barreira na classe de entrada do ensino médio? O decreto afirma que, mesmo que o número de vagas não tenha sido coberto. É, no mínimo, o cúmulo da pouca-vergonha. Embora discorde também com a exclusão no ensino superior, pois, no meu entender, a ninguém devia ser negada a oportunidade de se instruir por indisponibilidade da capacidade de o Estado prover a instrução, consagrada na Constituição da República de Angola (CA), artigo 79.º, quanto mais a entrada no ensino médio? Comecei a estudar na sombra de uma mulemba no pátio de uma igreja evangélica, onde, quando chovesse, íamos para um canto da mesma igreja, e ainda hoje tenho belíssimas memórias dos aprendizados neste espaço. Não tínhamos escola, mas tínhamos ensino. Foi a frequência de escola técnico-profissional (curso de electricista montador) que me abriu a porta para aprender outros saberes. Não é a massificação da construção de escolas, antes a formação e disponibilidade de professores, pois aprender se pode fazer em qualquer lugar, como, aliás, acontece em muitos lugares hoje no território nacional.

Efectivamente, se não invertermos o rumo, caminhamos para um precipício. Pois, não basta meia dúzia de eleitos proverem instrução aos seus filhos, se o filho do seu vizinho não estiver também a ser instruído, porquanto o País não cabe na mão de ninguém, o País é muito mais que as vontades de um grupo de pessoas, é a participação consciente de todos os seus filhos, cada um segundo as suas capacidades e dotes. A instrução é o único meio que faz que os cidadãos participem civicamente na alteração do meio que vivem para o seu bem-estar. O exame de aptidão é uma forma de excluir, principalmente os filhos das pessoas menos favorecidas, pois os filhos das pessoas bem posicionadas são sempre protegidas ou têm tratamento diferenciado, ou ainda, têm acesso aos renomados colégios e/ou escolas internacionais.

Importa reafirmar que não nos enganemos que uma sociedade como a que estamos a construir de profundas desigualdades não será capaz de implementar as reformas que proporcionem o desenvolvimento económico e social, pois esse só é possível com elevada capacidade cognitiva, que se obtém com a instrução, não se obtém excluindo os adolescentes logo nos anos de entrada. Pode até haver experiências idênticas em África, não conheço experiência idêntica em nenhum outro país.

Existem exames de aptidão para os cursos universitários, por exemplo no Brasil, o chamado testes vestibulares. O GMAT no Norte de América, esse hoje usado para os cursos de Medicina. Ensino médio, como se sabe, é a formação mínima que se exige dos cidadãos. Por isso, não faz sentido, pese as limitações de infra-estruturas escolares que se encontrem outras soluções, para atenuar a sobrelotação das instituições existentes. Será que a exclusão foi apenas criada para empurrar os adolescentes para o ensino técnico-profissional privado, muitos desses colégios, detidos pelas elites políticas, então as coisas ficam ainda mais sem sentido.

A diversificação da economia que muito se almeja alcançar não é exequível sem pessoas instruídas, se pensada apenas na base de investimento estrangeiro, eis a razão por que Alves da Rocha (2023) refere ser uma totalidade sociológica, por implicar a transformação da estrutura social. As novas tecnologias implicam cidadãos altamente instruídos, que dominam os modernos processos de produção e organização do trabalho, quer como técnicos, quer como empresários visionários, capazes de interpretar e absorver as inovações dos tempos modernos. O Censo populacional que está a decorrer vai prover informações sobre a estrutura da nossa sociedade, que antecipo muito desequilibrada, havendo, cada vez mais, um peso muito maior de cidadãos que não se conseguem ajudar a si próprios.

Fala-se que, no corrente ano lectivo, ficaram de fora do sistema de ensino mais de quatro milhões de crianças. O número vai crescendo, pois há dois anos se falava em dois milhões de crianças fora do sistema. Referi numa reflexão passada, neste espaço, que temos dois grandes factores que ameaçam a estabilidade do País: a ocupação desordenada de terras e o crescimento demográfico descontrolado, esse último agravado pela incapacidade de oferta do equipamento social (escolas, hospitais, estradas, etc.), para atender ao grande crescimento da população a que se assiste de forma serena e passiva. A riqueza de um país não está no que tem no seu subsolo, no ouro e dinheiro depositados nas contas bancárias, antes, o maior activo de um país é o seu povo, desde que instruído, inculcada a cultura de trabalho. Admiramo-nos por possuirmos um mercado de consumo tão exíguo? Não devia espantar ninguém, na medida em que a grande maioria de consumidores é de fraco poder de compras, porque quer as actividades que desenvolvam (agricultura de subsistência, ou revendedores de espalhafates), quer como assalariados auferem baixos salários, que, por vezes, nem permitem saciar a fome num dia, não havendo, por conseguinte, espaço para a poupança, que deveria estar depositada nos bancos para financiar a economia, sendo pessoas de baixa instrução.

Definitivamente, excluir adolescentes do acesso ao ensino técnico-profissional, tal como prescreve o Decreto Presidencial n.º 167/23, na classe de entrada, é amputar o desenvolvimento futuro de uma grande parte de adolescentes angolanos. Beneficia as elites políticas proprietárias de colégios do ensino técnico-profissional ávidos de encher os bolsos à custa da desgraça da maioria.

*Economista