A frescura ardente da Arte do Trio ( piano/ baixo/ bateria) de Vijay Iyer. Uma saxofonista da Nigéria, que frequenta os Festivais de Camden Town, em Londres, onde música, gastronomia, África e Caraíbas se cruzam, sob o olhar de espanto e encantamento dos " British", e aterra na Terceira, em quarteto- Miss Camilla George.

E mais?

Tudo no balanço do mar. Os "soul Brothers" de Nova Iorque, "AngraJazz Legacy Quintet" licenciados nos cursos das universidades Art Blakey & Jazz Messengers, com especializações nas sessões nocturnas de Harlem; a omnipresença da voz tarimbada nos Clubes eternos de Nova Iorque- sempre saturada de Jazz e de Blues, servida pela classe e mestria de Catherine Russell, com a história do seu lado.

Dois solistas de excepção, dois saxofonistas-alto: Perico Sambeat e Ricardo Toscano, envolvidos pelas respectivas orquestras; a Orquestra AngraJazz, que constitui a produção mais conseguida da Associação Cultural, que organiza o Festival e que varre a pacatez da Ilha, não com sismos nem temporais, mas com música, em Abril, para celebrar o Dia Internacional do Jazz; e, necessariamente, em Outubro, para acolher gente de muitos lugares, nomeadamente de Luanda.

E um maestro, Pedro Moreira, que transforma os momentos sublimes de música em percursos com aprendizagem assegurada. A história do Jazz intercalada com comentários úteis, oportunos.

No entanto, antes e depois dos concertos, o "Jazz na Rua", componente importante do Festival, abraçava a Ilha, desde 27 de Setembro, em sessões descontraídas nos locais mais emblemáticos, que se associaram à Festa do Jazz Terceirense.

AngraJazz, segundo compasso

com uma programação cuidada, poderia dizer de grande qualidade, com nomes importantes do Jazz que hoje se pratica no mundo, considero o AngraJazz um Festival indispensável, no panorama português, em grande medida devido à diversidade de propostas, e naturalmente, aos músicos competentes e cumpridores que desfilam em palco.

A actuação inaugural da Orquestra AngraJazz com o notável saxofonista espanhol Perico Sambeat remeteu-nos para um Jazz tricotado ao pormenor, mas, ao mesmo tempo, descontraído. Viajámos, serenamente, por alguns clássicos do "Great American Songbook", onde abundam verdadeiras pérolas.

Perico Sambeat, que tocou em Luanda em 1993, integrado no quinteto do malogrado pianista e compositor Bernardo Sassetti, continua a impressionar-me profundamente. À sua originalidade profunda, alia influências particularmente felizes. E às tantas, no meio de um solo, surge-nos uma imagem de Art Pepper, Phil Woods, Johnny Hodges.

Mas, se o fascínio pelos mestres do passado tem algum peso no seu estilo actual, devo reconhecer-lhe uma originalidade profunda. E, a meio do concerto surge um tema que iluminou o arranque do Festival: "Chelsea Bridge", de Duke Ellington / Billy Strayhorn. Perico surge com uma técnica magnificamente dominada, uma sonoridade luminosa, e contou com o apoio de um suporte seguro e solto dos capazes músicos da orquestra AngraJazz.

A última noite do Festival

A última noite continua a viajar comigo, agarrada à alma. Imaginem o que é estar num Grande Auditório, rodeado de gente do Jazz, e de repente, a confirmação de um sonho de Charlie Parker ( 1920-1955), o saxofonista de Kansas City, o solista original, e para muitos músicos, "o maior improvisador da história do Jazz".

Deixem-me recordar neste escrito um detalhe importante: Em 1948-1950, Charlie Parker realizou gravações com orquestras de cordas. Há quem diga que esse terá sido o único sucesso financeiro que Parker teve na sua vida. As críticas de "comercialismo" com o gesto destruíram psicologicamente o músico.

Fontes insuspeitas ( Giddins, Berendt, et al,) asseguram: "essa gravação com cordas "Bird with Strings" era a realização de um desejo e para quem as cordas traziam aquela aura de grande música sinfónica que ele sempre reverenciou".

Parker, é do conhecimento geral, teve uma vida complicada, curta e difícil, mas nunca esteve satisfeito consigo mesmo, dizem os seus biógrafos. Quando lhe perguntavam qual teria sido a sua melhor gravação, nunca conseguia responder. No entanto, quanto à pergunta acerca do seu músico predilecto, apenas em terceiro lugar vinha um músico de Jazz: Duke Ellington. Antes dele vinham Brahms e Schonberg e depois Hindmith e Igor Stravinsky, de acordo com Berendt e Huesmann, (In: O Livro do Jazz- de Nova Orleans ao Século XXI, SESC, São Paulo, 2024).

Ciente da importância desses detalhes, a organização do AngraJazz decidiu brindar os melómanos com o magnífico: Ricardo Toscano Quarteto+ Ensemble AH, "Bird with Strings" direcção de Pedro Moreira- saxofonista, maestro e pedagogo.

E então chegamos ao "Charlie Parker With strings", com a participação do notável saxofonista Ricardo Toscano e o seu quarteto, formado em 2013. Com um registo eminentemente Bop, os músicos desta formação são exímios instrumentistas: Romeu Tristão, contrabaixo; João Pedro Coelho, piano, e João Pereira, em bateria.

A violinista Elena Kharambura, de nacionalidade ucraniana, concertista da Sinfonietta de Angra do Heroísmo, rodeou-se de um conjunto de músicos muito diferenciados (quatro violinos; duas violas; dois violoncelos e ainda oboé e trompa) e realizaram o casamento entre a Clássica e o Jazz.

O resultado foi uma fascinante abordagem, dando origem a uma música intemporal e sofisticada.

Vivem comigo, ainda agora, alguns dos temas que ouvi, na sessão de despedida..."Easy to Love", "Summertime" e especialmente "Just Friends". O Ricardo Toscano Quarteto teria ainda tempo para brilhar, interpretando alguns clássicos do Jazz: "Stardust" e "Everything happens to me". Grande coesão e o saxofonista e "band leader" do quarteto, Toscano, consegue fazer prova de uma enorme sensualidade.

Uma última onda de recordações

Uma rosa de porcelana para a cantora Catherine Russell, de Nova Iorque. Oriunda de uma família de músicos.

A voz feita nos clubes de Jazz, a rodagem na estrada, as estórias de vida, a capacidade de nos contar uma história e aquela escola antiga do Jazz, com e sem palavras, proporcionaram aos amadores de Jazz presentes em Angra um momento único, muito forte, contagiante, particularmente nos momentos em que a Alma Jazzy se aproximava dos Ghettos e das Igrejas negras.

É assim que se contam estórias de vida, de milhões de pessoas reais e concretas, cuja música faz parte do seu quotidiano. É, com cantoras como Catherine Russell, que apenas precisou de um pianista, um baixista e um baterista, que se assegura o presente e o futuro da nossa música, sem esquecer, obviamente, o passado.

Depois de todas essas noites e dias nos Açores, faz todo o sentido, em meu entender, a ideia do pintor Georges Braque ( 1822-1963): " O vaso dá forma ao vazio e a música ao silêncio".