Ou seja, a montanha pariu um rato! E, mais uma vez, a Constituição é desprezada e a palavra dada não é honrada, porque num truque de mágica, passamos da "institucionalização" das autarquias (expectativa geral) para a "criação" de autarquia à autarquia, segundo o livre arbítrio do PR, a quem cabe definir, de forma diferenciada, as atribuições de cada Autarquia, fazendo da dita "Lei da Institucionalização das Autarquias Locais" uma simples lei de remissão.
A proposta de lei do Executivo é curta e objectiva, visando repor o gradualismo geográfico (territorial) que a última revisão parcial da Constituição revogou, eliminando totalmente o número 1 do artigo 242º que dizia que "a institucionalização efectiva das autarquias locais obedece ao princípio do gradualismo". Este articulado prestava-se a interpretações contraditórias: o campo do poder entendia que esse gradualismo devia ser geográfico, isto é, as autarquias deviam ser institucionalizadas, num período de 15 anos (depois reduzido a 10 anos), grupo a grupo, consoante o grau de desenvolvimento desses municípios, mantendo assim, segundo o seu critério, uma desigualdade de estatuto entre estes. O campo da oposição e dos movimentos de cidadania dizia que tal intenção constituía uma evidente violação da Constituição autárquica e dos direitos fundamentais dos cidadãos, evocando diversos princípios e direitos constitucionais, nomeadamente o da igualdade, da equidade, da participação política, da adequação e da solidariedade social e nacional. Da mesma maneira que evocavam a violação da clara directiva da Constituição autárquica que diz que "as autarquias locais organizam-se nos municípios" (artigo 218º, 1, CRA), não podendo ter lugar nenhuma descriminação territorial, entendendo-se então, a referência ao gradualismo, do revogado número 1, do artigo 242º, como significando um gradualismo funcional. Mas, com a revisão da Constituição e a eliminação completa desse número 1, não há mais lugar a interpretações contraditórias.
Para além de que a última revisão constitucional, não só eliminou o "princípio do gradualismo", como deu também uma nova redação ao número 2 do artigo 242º, que passou a prescrever, como disposição transitória e final, que "a institucionalização efectiva das Autarquias Locais é definida por lei, que estabelece a oportunidade da sua criação e o alargamento das suas competências" (artigo 242º, 2, CRA), eliminando "o doseamento da tutela de mérito" e "a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais", como constava da redação revogada.
Este quadro constitucional, que fala em "institucionalização efectiva das Autarquias Locais" (e não de uma autarquias local), mais claramente do que o anterior, não conforta a intenção do Executivo de estabelecer um regime diferenciado de criação das autarquias locais. A sua intenção de não institucionalizar as autarquias através de uma lei comum a todas elas, mas remetendo para 164 leis de criação de cada uma das autarquias, de forma diferenciada, segundo um processo burocrático cujos limites são determinados pelo Presidente da República e segundo um regime de transitoriedade, não é conforme a Constituição, nem com as onze leis já aprovadas. Estas estabelecem um regime comum para todas as autarquias municipais, que nos termos da lei magna, são de "institucionalização efectiva". A "institucionalização efectiva" não anuncia um desiderato, como é intenção do Executivo, com a remissão para leis de criação de cada autarquia. A "institucionalização efectiva" significa tornar real a governação dos municípios "com base no principio da autonomia político-administrativa". Significa tornar num facto a democracia local, ou como a Constituição diz, "a organização democrática do Estado, ao nível local" (artigo 213º, 1, CRA).
A Constituição diz claramente, primeiro, que há dois níveis de circunscrições territoriais: Províncias e Municípios (podendo ainda haver Comunas e Distritos, como entes territoriais equivalentes (artigo 5º, 3, CRA). Segundo que "as autarquias organizam-se nos municípios" (artigo 218º, 1, CRA), como já foi dito. São, pois, de "institucionalização" obrigatória.
É importante ressaltar que a autarquia não é uma circunscrição territorial, é apenas um estatuto político jurídico que se têm de atribuir ao município, por força da Constituição. Não se criam autarquias! Criam-se municípios, e na governação destes, cumprindo a Constituição, aplica-se o "princípio da descentralização político-administrativa" e aqueles assumem o estatuto de autarquia.
Mas, desta vez, para a mesma matéria ("institucionalização das Autarquias Locais") não há apenas a proposta do Executivo. Entrou também na Assembleia Nacional, um "Projecto de Lei da Institucionalização Efectiva das Autarquias Locais", apresentado pelo Grupo Parlamentar da UNITA. Este, concretizando o regime autárquico prescrito na Constituição, estabelece um regime comum para todos os municípios e densifica cada uma das suas "atribuições nos domínios da educação, saúde, energias, águas, equipamento rural e urbano, património, cultura e ciência, transportes e comunicações, tempos livres e desportos, habitação, acção social, protecção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do consumidor, promoção do desenvolvimento económico e social, ordenamento do território, polícia municipal, cooperação descentralizada e geminação" (artigo 219º, CRA).
Tendo ambas as propostas sido aprovadas na generalidade, em sede da discussão na especialidade, os grupos parlamentares da UNITA e do MPLA entenderam procurar harmoniza-las para levar apenas à Plenária, para aprovação final, apenas uma proposta. As "conversas" têm estado a demorar, dado o caracter de urgência que foi solicitado pela UNITA para a sua proposta e até agora não há fumo branco na casa das leis. Mas, face a incompatibilidade de natureza das duas propostas, dificilmente serão harmonizadas. E, dado o chicoespertismo manifestado com a nova Lei da Divisão Político-Administrativa e os constantes atropelos à Constituição, é bem provável, que mais uma vez, a maioria de bloqueio vai conduzir o país para um grande impasse.
* Investigador-coordenador do Centro de Estudos Africanos da UCAN