No entanto, nas recentes eleições, realizadas a 1 de Dezembro do ano corrente, o povo Cabo-verdiano decidiu fazer uma viragem política, atribuindo ao PAICV, 15 municípios dos 22 existentes, uma vitória não só retumbante, mas também histórica.
Analisando os resultados do ponto de vista político, constata-se que prevalece a bipartidarização no ecossistema político Cabo-verdiano, sustentado pelos 2 gigantes (PAICV e MpD), tal como acontece ao nível geral, onde ambos absorvem 94% do total dos votos dos eleitores. Neste ciclo eleitoral, os dois gigantes abocanharam todas as Câmaras (MpD com 7) e Assembleias Municipais (PAICV com 14 e MpD com 8). Do universo de 350 deputados municipais, 181 (51,7%) pertencem ao PAICV, 155 (44,2%) são do MpD, 10 (2,8%) da União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID), 3 (0,8%) do Movimento Independente Tarrafal São Nicolau (MITSN) e 1 (0,2%) de Santa Catarina Sempre e Acima de Tudo (S-SAT), contra 0 deputado dos outros 5 actores concorrentes.
Neste ciclo eleitoral, a sociedade civil, mais uma vez, não conseguiu conquistar nenhuma câmara municipal, mantendo o "síndrome de partidarismo" que caracteriza o ambiente político autárquico Cabo-verdiano. Do nosso ponto de vista, esta variável indica uma certa regressão que a democracia municipal Cabo-verdiana tem registado nos últimos ciclos eleitorais, ao contrário de um passado mais recuado em que grupos independentes conseguiram ganhar câmaras municipais. Querendo ou não, por força do novo contexto, pode-se ir sedimentando uma ideia errónea no imaginário do povo Cabo-verdiano de que as autarquias são um espaço exclusivo dos actores político-partidários, com destaque para os dois de sempre (PAICV e MpD).
No quadro particular, o município de São Miguel, que tive a sorte de visitar e fazer um estudo de caso em Dezembro de 2023, manteve a sua fidelidade de sempre ao MpD que o governa desde 2000, depois do seu desmembramento do Tarrafal em 1997. O poder hegemónico do MpD neste município se estende também à Assembleia Municipal em que contará com 10 (55%) deputados contra 7 (39,7%) do seu rival PAICV, no quadriénio 2024-2028. Contudo, em matéria de género, a arquitectura do poder local micaelense que sai destas eleições representa um retrocesso, pois ao contrário dos 2 mandatos anteriores em que na composição dos 2 poderes colegiais havia equilíbrio de género, Presidente da Câmara um homem (Herménio Celso Silva Gomes Fernandes) e da Assembleia uma mulher (Leocádia Baptista Gomes Furtado), no actual contexto, os titulares dos dois poderes são homens. O Presidente da Câmara, agora no seu terceiro mandato consecutivo, mantém-se, mas a Presidente da Assembleia foi substituída por Salvador Tavares Silveira.
A democracia Cabo-verdiana goza de uma boa reputação externa. Ela é considerada uma das democracias mais robustas do continente africano. No entanto, ela não é perfeita, tal como não existem democracias perfeitas em lado nenhum por este mundo fora. Para além das insuficiências já referenciadas, alguns estudiosos acrescentam também a supremacia do executivo sobre o poder legislativo, a sua extrema politização, a fraca participação dos cidadãos, a letargia da sociedade civil e a cultura de compra de votos, uma espécie de corrupção eleitoral. Quando visitei Cabo Verde, em Dezembro de 2023, constatei que desde os taxistas, académicos, políticos da oposição e membros da sociedade civil, com quem interagi, tinham uma percepção diferente da sua democracia. Algumas dessas vozes roçam ao extremismo, reduzindo a democracia Cabo-verdiana às dimensões de mero eleitoralismo e elitismo.
Na altura, fiquei muito chocado, ao confrontar a visão externa da democracia Cabo-verdiana, muito positiva, que carregava comigo, com a interna, divergente, defendida por alguns cidadãos do país. Entretanto, passado este tempo e com a cabeça fria, saúdo o criticismo dos Cabo-verdianos ao estágio da sua democracia, quer concorde ou não com algumas das suas opiniões. Este inconformismo é que leva a mudanças susceptíveis de elevar cada vez mais o nível da sua democracia, quer ao nível nacional, como ao nível municipal. É esse espírito de inconformismo que na minha leitura terá inspirado os eleitores Cabo-verdianos a retirar a sua confiança política ao MpD e a transferi-la para o PAICV para produzir as mudanças qualitativas nos quadrantes social, político e económico de que estão sedentos nos municípios.
Portanto, criticismo à parte, mérito deve ser dado à democracia Cabo-verdiana. A sua elite política, apesar dos desafios ainda prevalecentes, continua determinada em trilhar pelo caminho da democracia, procurando gradualmente consolidá-la no tempo. Por outro lado, o povo eleitor mostra a sua soberania com o poder de voto, que é capaz de provocar mudanças políticas sem precedentes no xadrez da governação política dos municípios como acabou de fazer no presente ciclo eleitoral em relação ao próximo quadriénio 2025-2028.
Foi preciso o PAICV esperar pacientemente por este momento histórico. O que quer dizer que, em democracia, municipal ou nacional, não existem vitórias nem derrotas eternas. O vencedor de hoje ou dos círculos eleitorais passados poderá ser o vencido de amanhã. O inverso também é valido. Portanto, da democracia municipal Cabo-verdiana e, de forma particular, da vitória retumbante do PAICV, vem esta lição para o Governo de Angola, que não dá passos concretos para a institucionalização das autarquias no País, presumivelmente devido ao medo de o partido governante perder o poder, total ou parcialmente, em benefício de outros actores políticos, conforme alguns sectores da sociedade angolana defendem, é infundado. n
*Assistente Social, Docente e Investigador Auxiliar
Centro de Estudos Africanos (CEA)
Universidade Católica de Angola (UCAN)