Por seu turno, na Estratégia de Endividamento (EE) 2024-2026 vigente, o Governo sustenta ser "imperioso que se evite o financiamento externo de projectos de investimento público, cujo objecto do contrato comercial é essencialmente de conteúdo local e haja capacidade técnica pelas empresas e financeira pela banca local, para execução do projecto" de modo a assegurar "um maior equilíbrio entre o financiamento externo e interno", além de permitir "não só estimular o desenvolvimento da economia nacional, mas reduzir os riscos inerentes à captação de financiamento externo". Ou seja, o Governo entende não fazer sentido endividar-se em moeda estrangeira para pagar despesas internas em moeda nacional de obras executáveis por empresas locais e financiáveis também pela banca local em moeda nacional.
Por outro lado, vem-se observando uma queda tendencial das receitas petrolíferas do Estado, como consequência da queda tendencial da produção e num quadro em que as receitas de exportação do petróleo bruto se mostram voláteis, dada a volatilidade do preço de exportação no mercado internacional, o que eleva o risco de liquidez do Estado em moeda estrangeira e o seu risco cambial na perspectiva da convertibilidade. Quer dizer: dado um nível de despesa em moeda estrangeira, a redução tendencial das receitas em moeda estrangeira do Estado tende a reduzir as disponibilidades deste em moeda estrangeira para fazer face a tais despesas, assim, como a redução das receitas do País em moeda estrangeira reduz as possibilidades do Estado adquirir divisas para fazer os pagamentos em moeda estrangeira. Por isso se compreende que, no seu Relatório do Artigo IV de 2023 sobre Angola, publicado em Março deste ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tenha referido que o risco de sustentabilidade da dívida do País é elevado, reflectindo a sua exposição ao risco cambial (pelo elevado peso da dívida em moeda estrangeira - cerca de 80%), à produção e preço do petróleo bruto (com impacto sobre as receitas) e uma base de credores estreita (sobretudo no mercado interno) e o aumento dos custos dos empréstimos.
Acontece, entretanto, que durante o ano fiscal corrente - 2024 - o Tesouro Nacional vem emitindo dívida interna em moeda estrangeira, com a particularidade de ser para a captação de recursos, tanto em moeda estrangeira, como em moeda nacional, sendo por isso elegíveis como meio de pagamento todos os instrumentos considerados líquidos de acordo com a definição do Banco Nacional de Angola, em moeda estrangeira e em moeda nacional. Ou seja, em face dos riscos apontados, que deveria levar o Tesouro Nacional a reduzir a exposição da dívida do Estado ao risco cambial, este parece actuar exactamente de maneira contrária, pois tende a aumentar tal exposição e - pior - para levantar também liquidez em moeda nacional.
Daí, então, a questão: mu konda "why"?
Nas suas comunicações do lançamento dessas operações, a Unidade de Gestão da Dívida (UGD) do Ministério das Finanças tem referido, invariavelmente, que tais emissões fazem "parte da estratégia de fomento do mercado de títulos públicos". Parece óbvio que, para fomentar o mercado de títulos, não seria necessário emitir dívida interna em moeda estrangeira para arrecadar recursos em moeda nacional e destinados a pagar despesas internas também em moeda nacional, aumentando, consequentemente, a exposição do Estado ao risco cambial.
No ora referido PEM 2017-2018, entretanto, podemos encontrar pistas sobre as verdadeiras razões, tendo em atenção que o quadro macro-económico actual assemelha-se ao de então, se é que não é pior. Assim é que, nele, lê-se:
"Com o objectivo de alargar a base de investidores e satisfazer aqueles que procuram cobertura de risco cambial, o Estado tem optado pela emissão de títulos indexados ao dólar, protegidos da desvalorização cambial, passando este a assumir a totalidade do risco cambial relativo àquelas emissões".
...
"Os títulos indexados, embora representem um risco para o equilíbrio das contas públicas, são os títulos com maior procura dado o retorno que conferem. As emissões directas feitas para pagamentos de atrasados têm tido pouca procura pela pouca profundidade do mercado e pelo risco cambial intrínseco aos mesmos, ao não estarem indexados, num ambiente de elevado desequilíbrio cambial".
Percebe-se aqui que, em face da elevada instabilidade macro-económica - sobretudo níveis elevados de inflação e de depreciação da taxa de câmbio - os aforradores tendiam a "fugir" do Kwanza como meio de reserva de valor - como tenderão agora - a menos que as taxas de remuneração nominal dos activos denominados nessa moeda fossem suficientemente elevadas para compensar a erosão pela inflação ou depreciação cambial. Quer isso dizer que, para ser capaz de levantar liquidez em moeda nacional, ante os elevados níveis de inflação e depreciação cambial actuais, o Tesouro Nacional obriga-se a pagar níveis de remuneração que tornem os seus títulos numa alternativa viável para a aplicação de poupanças pelos potenciais investidores. Assim, o Tesouro Nacional entenderá que tais níveis se mostram para si proibitivos, preferindo assim a emissão de dívida em moeda estrangeira, ainda que para cobertura de pagamentos internos e em moeda nacional. E isso abre-lhe também a possibilidade de ter como investidores - voluntariamente ou não - entidades públicas que detenham poupanças em moeda estrangeira - como foi o caso em 2021 e estará a ser também neste ano de 2024 com a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANPG), que tem sob sua gestão os fundos de abandono do sector petrolífero. De resto, como ora referido, o FMI apontou a base de credores estreita no mercado interno e o aumento dos custos dos empréstimos como dois dos factores que influenciam o risco de sustentabilidade da dívida governamental angolana.
Há, contudo, um problema estrutural subjacente a todo esse quadro, que é a asfixia da tesouraria pública pelo Serviço da Dívida governamental. Assim é que, no ano de 2023, o Serviço da Dívida correspondeu a 133% das Receitas Próprias do Estado, enquanto no corrente exercício, de acordo com a proposta do Orçamento Geral do Estado (OGE) 2025, deverá corresponder a 107% e no exercício de 2025 a 85%. Isso significa que os pagamentos das despesas de cada ano corrente dependem quase inteiramente de recursos do endividamento. Esse limitado espaço fiscal, associado à incapacidade de limitar as despesas inscritas no OGE, têm levado à aprovação dos orçamentos sem estarem inteiramente financiados, já que os níveis de endividamento considerados têm estado acima da disponibilidade do mercado em financiar e da capacidade efectiva do Governo os levantar. É desse facto que decorrem os atrasos que se tem verificado no pagamento das remunerações dos servidores públicos, assim como a irregularidade na atribuição de Quotas Financeiras às Unidades Orçamentais que tende a gerar situações de atrasados de pagamento internos a fornecedores de bens e serviços. Não procede, por isso, a alegação das autoridades do desfasamento entre o momento da recolha dos fundos e o da realização dos pagamentos como causa, pois isso é algo normal nas finanças públicas de qualquer país e sempre existiu em Angola, problema que se resolve por meio da gestão de tesouraria, fazendo-se recurso a instrumentos como a Programação Financeira e o Plano de Caixa e recorrendo-se à antecipação da receita tributária com a emissão de dívida de curto prazo - Bilhetes do Tesouro - resgatável no mesmo exercício. Deste modo, a justificação do atraso do pagamento das remunerações com tal desfasamento não procede, como também não é de crer numa eventual incompetência da DNT na gestão de tesouraria.
É importante reter, entretanto, que a Constituição da República veda a aprovação de orçamentos não financiados ao dispor no n.º 2 do artigo 104.º que "o Orçamento Geral do Estado (...) deve ser elaborado de modo que todas as despesas nele previstas estejam financiadas".

*Economista