O perdão presidencial, que se enquadra nos festejos dos 50 anos de Independência Nacional, está, no entanto, a ser encarado em alguns círculos e meios forenses como uma politização da nossa justiça ou, no mínimo, dos casos considerados bicudos.
No espaço público, a imprensa sob controlo estatal esmera-se por dar grande visibilidade ao acontecimento e enaltece, até à exaustão, o PR, tendo arregimentado para o efeito os habituais comentadores e analistas ao serviço do regime.
À porta das cadeias ou no interior dos estabelecimentos prisionais, as TPA"s e a rádio que diz que "une o País" têm vindo a colher e "filtrar" os depoimentos junto dos beneficiários do indulto presidencial.
À boca pequena, diz-se que os beneficiários dessa medida terão sido industriados pelos gabinetes de acção psicológica no sentido de deificarem diante das câmaras de TV"s o gesto magnânimo do PR por lhes ter concedido a liberdade e dado mais uma oportunidade na vida.
É inegável que o perdão concedido pelo PR é merecedor de aplausos, mas isso pode ou podia ser feito sem empolamentos ou exagerados elogios que, nalguns casos, chegam a raiar o culto de personalidade.
Os excessos de mediatização do perdão presidencial levam-nos a crer que estamos diante de mais uma acção premeditada e concertada no sentido de inverter os baixos níveis da popularidade de João Lourenço e o clima de raivas surdas cada vez mais crescente ao seu actual modelo de governação.
Apesar de a medida presidencial ter abrangido mais de cinco dezenas de condenados, é dado adquirido que os destaques dessa acção recaem sobre Zenú dos Santos, a influenciadora digital Neth Nhara e aos quatro activistas cívicos, nomeadamente Adolfo Campos, Gilson Moreira, tcp, Tanaice Neutro, Hermenegildo Victor José, aliás, Gildo das Ruas, e Abraão Pedro Santos, tcp, O filho da Revolução - Pensador, condenados no ano passado a dois anos de prisão, aparentemente por motivações políticas.
Em alguns círculos de opinião, acredita-se que o recurso ao indulto de que lançou mão o PR teria como um dos objectivos "desencalhar" alguns processos judiciais que colocaram os tribunais numa saia justa. E apontam o caso do antigo presidente do Fundo Soberano e filho do ex-PR, Zenu dos Santos, que esteve no centro de um conflito de competências entre os dois maiores tribunais superiores.
Com o indulto, crê-se que João Lourenço terá evitado não só a exposição das disfunções de dois tribunais, como também passar a ideia de que ele não tem motivações políticas ou pessoais em perseguir um dos filhos do ex-PR.
Do ponto de vista jurídico, a emenda veio a revelar-se pior do que o soneto, visto que o indulto presidencial subverteu uma regra jurídica ao incluir pessoas cujos processos não têm sentenças transitadas em julgado, sendo o caso mais flagrante o processo de Zenú dos Santos sobre o qual impendem recursos.
Se o indulto serviu, aparentemente, para encerrar um conflito judicial entre os dois tribunais superiores, o facto é que o mesmo levantou outra polémica que tem a ver com o perdão presidencial não ter abrangido outras figuras envolvidas no "processo 500 milhões de Dólares", com destaque para o antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA), Víctor Filipe.
À falta de um pronunciamento convincente adensa-se a convicção de uma suposta discriminação e injustiça cometida contra os demais envolvidos nesse processo que tem Zenú dos Santos como seu "cabeça de cartaz".
Zola Benga, advogado dos 4 activistas que foram abrangidos pelo perdão presidencial, considera que houve um aproveitamento político por parte do Chefe de Estado em conceder o indulto aos seus constituintes, já que estes poderiam ser postos em liberdade condicional depois de terem cumprido metade da pena a que tinham sido condenados. Diz mesmo que a entrega das solturas estava prevista para antes do Natal.
Em sua opinião, o indulto não esconde o mau funcionamento da nossa justiça que, segundo o jurista, não foi também capaz de responder ao pedido de habeas corpus que intentou a favor dos seus clientes.
Outros juristas alinham pelo mesmo diapasão, pelo que consideram que o perdão presidencial deu, por um lado, a possibilidade de João Lourenço colher dividendos políticos e, por outro, reduzir a pressão interna e externa das ONG"s, com destaque para a Amnistia Internacional que havia lançado uma campanha a favor dos activistas, que considerou as prisões e condenações como tendo sido ilegais.
Verdade seja dita, não é a primeira vez em que o regime angolano lança mão a um expediente do género para supostamente "apagar" erros grosseiros e imperdoáveis cometidos pelos distintos órgãos da justiça.
Convém recordar que, em meados de 2015, um grupo de jovens activistas tinha sido detido e acusado de crimes de rebelião e actos preparatórios de golpe de Estado, quando se encontrava a ler pacificamente um livro do cientista político norte-americano Gene Sharp.
Sem provas consistentes que indiciassem a preparação de um golpe de Estado, as autoridades desdobraram-se numa série de acções que levaram à convocação dos deputados da Assembleia Nacional e do corpo diplomático acreditado no País, a quem informaram sobre os supostos planos golpistas.
Numa clara violação ao segredo de justiça e de grosseira interferência no sistema de justiça, o antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos, chegou mesmo a acusar os jovens activistas, com Luaty Beirão à testa, de terem gizado em plano para a alteração da ordem constitucional por meios violentos.
Nesse aberrante julgamento, que mais perecia político do que jurídico, o Ministério Público, encurralado, viu-se "forçado" a recuar e retirar as acusações de "crimes de rebelião e actos preparatórios de golpe de Estado", convertendo-as em "associação criminosa".
Prevendo um descrédito total do julgamento, e diante da pressão internacional que apelava a um julgamento justo e despolitizado, às autoridades angolanas não lhes restou outra saída, senão lançar mão a uma amnistia geral, cuja proposta foi submetida pelo Executivo à Assembleia Nacional.
Mas antes, e na perspectiva de evitar o pior, foi aprovada às pressas a Lei das Medidas Cautelares em Direito Penal que permitiu a soltura e a consequente prisão domiciliar do grupo de activistas, que ficou celebremente conhecido pelos "15+2". Tanta era a pressa que os jovens foram soltos sem que a lei tivesse sido aprovada pela AN.
No topo da colina: Do indulto presidencial à crise que assola a nossa justiça
Os últimos dias do ano findo e os primeiros deste novo ano têm sido marcados por uma excessiva mediatização da figura do Presidente da República como resultado do indulto que ele concedeu a 51 pessoas que estavam em rota de colisão com a justiça.