A propensão para enganar o parceiro é antiga, é uma nódoa presente no ADN da família do MPLA. Em 2019, a malvada tendência começou a desenhar um novo estratagema, inventando a CIVICOP, Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos. Esta singular missão para resolver o desencontro pretendia conciliar quem se incompatibilizou no intervalo de duas datas bem determinadas, 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, e quis fazê-lo "em memória das vítimas dos conflitos políticos", seja lá o que isto quer dizer.

É claro que a reconciliação com a UNITA está fora de questão, pois nunca o agrupamento de Savimbi viveu em harmonia com o MPLA e a reconciliação só acontece entre quem já esteve conciliado. O actual leader da UNITA declarou que optou por não certificar os restos mortais dos irmãos que lhe foram devolvidos, para não deitar por terra a implementação do plano de reconciliação, assim o disse, isto é, podem até ter sido enganados, mas isso é de menos importância. Mas, se a reconciliação desejada dizer respeito aos intervenientes no "27 de Maio de 1977", como são todos pertença do mesmo agrupamento político, o MPLA, então já seria possível considerar a reconciliação. Mas ela não acontece pelo toque mágico de uma varinha de condão, primeiro é preciso apurar a verdade, pois, sem que esta seja conhecida, não é possível passar à etapa seguinte, que, tenha-se atenção, ainda não é a da reconciliação. Então, posso concluir que a comissão foi criada para tratar apenas do assunto "27 de Maio", pois só os intervenientes neste conflito podem vir a pretender, depois de observados todos os passos que uma comissão de verdade obriga, a reconciliação. A apresentação pública da Comissão também serviu para destacar nos jornais, nas rádios e televisões e onde mais calhasse a figura de um presidente seriamente preocupado com as violações dos direitos humanos e, nesse pedestal, atenuarem ou bloquearem as acções de denúncia, uma incómoda teimosia, que temos vindo a praticar há quase meio século. Então, exaltados os bons ofícios do Presidente, reciclaram a chamada "fundação 27 de Maio", surgindo esta com a roupagem de única e verdadeira representante dos familiares das vítimas, e por isso a única convidada a participar nos trabalhos da comissão, atirando as associações dos sobreviventes, dos órfãos e outros familiares, borda a fora.


No passado dia 21 de Março, descobriu-se que tinham sido entregues à equipa forense portuguesa - uma referência mundial, a quem Angola pediu ajuda e deu palco para uma dissertação sobre o assunto - os restos mortais que se esperavam vir a corresponder, depois de analisados pela antropologia forense e pela identificação genética, com as amostras disponibilizadas pelos familiares. Não deu a bota com a perdigota, não houve nenhuma coincidência.


O logro prossegue a bom ritmo e, a cada cavadela da sua minhoca, surgiu nos jornais uma lista imensa, uma chusma de nomes seleccionados para a láurea, a ter lugar no dia 4 de Abril de 2023, o dia que o Governo e o MPLA adoptaram como sendo o da paz. É um acontecimento sui generis. O que leva um governo a distinguir, sem outro motivo que não seja a mera propaganda? O que impele o Presidente da República e do MPLA a galardoar pessoas que o mesmo Estado e o mesmo MPLA atiraram para as prisões, que as torturaram e as mataram, ao mesmo tempo que recompensa os seus algozes? É uma atitude que não coaduna com a vontade de reconciliar, muito menos de perdoar. É uma manifestação de puro e provocatório cinismo, à falta de outro adjectivo, conceder condecorações a Nito Alves, uma vítima, e Carlos Jorge, um torcionário vil, adjectivalização que testemunhei, a quem a CIVICOP resolveu qualificar como vítima. Mas vítima de quê, da sua própria mente perversa e retorcida? Para esse tipo de gente existe uma outra distinção, o hospício ou a prisão. Mas não é tudo, permitam-me este assombro: a que propósito Luís dos Passos da Silva Cardoso, que se afirma como um participante na insurreição, nome que atribui ao "27 de Maio de 1977", mereceu a "Ordem de Mérito Militar - 3.ª Categoria", sem o ter sido a título póstumo, a condição em que todos os desaparecidos são redimidos? Há quem tenha sido ministro no Governo de Agostinho Neto, sem ter nunca ganho qualquer distinção, tão pouco se fala dele, refiro-me a David Aires Machado "Minerva", que foi Ministro do Comércio Externo e Ministro do Trabalho e desaparecido desde o dia 27 de Maio de 1977.


Enquanto o MPLA, ou outro qualquer sucedâneo, for o responsável pelos destinos de Angola, jamais os restos mortais das vítimas do "27 de Maio de 1977" serão entregues às famílias, fazê-lo seria um acto de contrição e o arrependimento é uma qualidade que esta gente no poder não tem, tamanha a sua arrogância, mas há outras razões:

1- A verdade. Procurar a verdade é coisa que o MPLA jamais fará, pois sabe, tão bem como nós o sabemos, ser tema que não lhes é favorável. Dou um exemplo: Escrevemos cartas, deixámos pedidos nas entrevistas que concedemos ao longo dos anos, escrevemos em livros e até enviámos recados ao anterior Presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, para que, na qualidade de chefe da "comissão de inquérito ao fraccionismo", nos mostrasse o documento que elencava as provas e atestava a conclusão a que chegara o inquérito. Sabemo-lo inconclusivo, mas isso é a nossa verdade, que contrasta, como é obvio, com a verdade deles. Por isso era necessário que revelassem o que ficou escrito, preto no branco, no documento, a verdadeira verdade e assim darmos por encerrado este capítulo. O que leva o MPLA a não o fazer? Não quer encarar a verdade e assim nunca revelou o conteúdo do documento nem tão pouco respondeu ao pedido, aliás, esta conduta que privilegia a mudez é antiga, mas continua em vigor. Depois de conhecida a trafulhice que envolveu o tratamento dos restos mortais, endereçámos uma carta aberta ao Presidente João Lourenço. O tempo passa e a resposta não vem, o que equivale a dizer, bem podemos esperar sentados.


2- A antropologia forense não é uma ciência infalível, como a das séries televisivas que nos enviam dos Estados Unidos, mas atrevo-me a dizer: quando os procedimentos recomendados são cumpridos escrupulosamente, é possível recuperar a identidade dos despojos humanos, o momento da morte, até mesmo a causa. Ora, o estado angolano e o MPLA sabem, tal como nós o sabemos, que não houve dignidade com a vida dos prisioneiros escolhidos para arcarem com a morte, a selvajaria da tortura antecipou sempre o empurrão para a vala, que depressa se tornou comum, e prisioneiros houve que foram lançados ao mar. Então permitir os procedimentos adequados e seguir as boas e recomendáveis práticas forenses, pelo menos para aqueles que permaneceram em terra, iria certamente pôr a descoberto o horror da morte, obra dos carrascos, verdugos que têm nome, que já lograram uma amnistia e agora, cúmulo da provocação e da arrogância, foram condecorados pelo Presidente da República e do MPLA, quando deviam ter sido acusados de prática criminosa. Ora, se alguns deles já foram ministros e outros ainda o são, se também os houve e há, a ocupar um lugar no Comité Central do MPLA, para meio entendedor, meia palavra basta.


3- Quando designamos por "desaparecidos" os nossos familiares, amigos e camaradas, dos quais ignoramos o paradeiro, este é um termo que só a nós diz respeito, não tem o mesmo significado para o Estado angolano e para o MPLA, pois a estes basta que nomeiem alguns dos algozes, Carlos Jorge, por exemplo, e este sem hesitar apontará os locais precisos onde os escondeu, depois de os torturar e de os matar. Talvez seja por isso que nos deparamos com a condecoração do Carlos Jorge, não sabemos se pela sua boa memória e bom faro, se pelo rasto de morte que deixou, ou até mesmo pelas duas.
Então, como se viu, apenas falta a vontade, pois os atributos já lá estão todos. Pois é, mas a vontade, asseguro-vos, nunca o Estado angolano nem o MPLA a vão ter.
O Governo angolano e o MPLA bateram no fundo, já ninguém minimamente sério e no seu juízo perfeito acredita na redenção desta força política, fundada para libertar o povo das garras coloniais e criar, como se canta no hino, uma Angola renovada.

Angola avante com gente deste calibre, que venha o diabo e escolha!